Zero Hora —
Seu primeiro livro sai em 1983, em uma época em que o senhor já
contava por volta de 50 anos e tinha uma carreira como ilustrador e
artista gráfico. Por que tão tarde?
Schlee — Acho
que porque, naquela época, não havia muita oportunidade de
publicação, ao contrário do que acontece hoje. Era caro e
impensável alguém se lançar literariamente mandando imprimir por
conta seu próprio livro. Não passava pela minha cabeça isso. Por
isso, concorri em alguns concursos literários, em todos com alguma
marca que me incentivou a continuar. Tentei primeiro aqui no RS, com
um livro chamado Jaguarão e o Resto do Mundo, que ganhou menção
honrosa. Depois, concorri duas vezes ao prêmio José Lins do Rego,
também com um livro chamado Jaguarão Universo, em que, de certa
maneira, recolhi uma parte do Jaguarão e o Resto do Mundo, e
esses dois acabaram sendo publicados posteriormente em cada uma das
partes do Contos de Sempre. Então, eu esperava uma oportunidade
de publicar.
ZH — Contos de Sempre e Uma
Terra Só, seus dois primeiros livros, parecem comungar de um
propósito comum: mostrar a fronteira como uma região de identidade
única no tempo, no caso de Contos de Sempre, e no espaço, em Uma
Terra Só. Foi um projeto consciente?
Schlee — Eu não
gosto de dizer que eu tenha um projeto literário, que tenha
pretendido exatamente: “vou fazer assim”. Não consigo entender
nenhum colega meu, nenhum autor que tenha um projeto literário, não
creio nessa definição. Comigo, o que aconteceu foi que eu tinha
esses dois livros de contos que haviam vencido concursos, e os dividi
no primeiro livro, mas tinha o impacto do tempo decorrido, e eu os
inverti no volume, a seção que eu denominei Contos de Ontem eram os
mais recentes, e os Contos de Hojeeram os mais antigos. Essa era
uma perspectiva estritamente temporal. Já no livro seguinte, Uma
Terra Só, eu tinha pretensão de fazer o leitor atentar para um
mundo que não é o verdadeiro, e sim o meu mundo imaginado, meu
mundo literário, que eu pretendi conquistar e acabei por ele
conquistado, porque não tenho condições de sair dele.
ZH —
É estranho o senhor falar na ausência de um “projeto”, já que
os seus livros caracterizam-se por uma unidade temática (O Dia em
que o Papa Foi a Melo, Contos de Futebol).
Schlee — São
livros em que trabalho em cima de uma tese. Há um determinado
momento nesse meu mundo literário em que descubro alguma coisa para
desenvolver em forma de tese, para demonstrar ao leitor minha visão
de mundo. Nesse aspecto, há um certo conteúdo pedagógico. É uma
pretensão grande, mas eu vejo assim. Então, quando eu parto para um
livro como O Dia em que o Papa Foi a Melo, estou perplexo diante
dessa visita do Papa, sendo o Uruguai um país laico declaradamente.
Não só porque está expresso na Constituição, mas porque o
Uruguai é laico de fato, e em 1904 já não havia mais crucifixos em
repartições públicas, uma discussão que fomos ter agora aqui no
Brasil. Sabendo que nesse país laico, na sua zona mais pobre,
paupérrima, o papa iria fazer uma visita, fiquei atônito. Então
resolvi não ir a Melo no dia 8 de maio de 1988, o dia em que ele
foi. Mas fui na semana seguinte. E consegui entrevistas e toda uma
documentação para escrever um livro de contos.
ZH — O
Dia em que o Papa Foi a Melo é um relato da visita da maior
autoridade da cristandade ao Uruguai, mas o primeiro conto, o que
abre o livro, enfoca um padre em crise de fé que decide não ver o
papa. É a representação desse confronto que o deixou perplexo
entre a figura do papa e a laicidade do Uruguai?
Schlee — Exatamente.
Esse padre, que, de certa maneira, sou eu, vai negar tudo, mesmo com
todo seu conhecimento do cerimonial religioso. Ele não nega apenas a
questão da visita do papa, o que é elementar, superficial. Ele
contesta tudo, e isso está representado em pequenos detalhes de sua
indumentária, da desolação do espaço onde ele vai se meter, uma
paisagem à qual o Papa não iria. Tudo isso está pesando em um
conjunto do qual tentei fazer a receita desse conto, que é, de fato,
uma história chave do livro. Depois tem algumas coisas no livro,
como a negação do milagre, da possibilidade de um milagre... Eu não
escrevi na ordem em que pus, fui alinhavando até chegar ao Conto
do Turco Jaber, que é um conto louco, que denuncia, entre outras
coisas, essa questão da gauchidade. Porque nós temos uma
dificuldade muito grande de sermos sul-rio-grandenses. O gentílico é
dominado pela palavra “gaúcho”, que se tornou sinônimo. A
distância é tão grande entre o gentílico e o significado maior da
palavra “gaúcho” que escandaliza.
ZH — Por que o
conto? Ao longo de décadas de carreira, o senhor escreveu um único
romance, e um livro de contos que se interligam, mas permaneceu
focado na forma curta. Essa preferência é uma questão de fôlego
literário?
Schlee — Acho que sim. Tem aquela ideia do
Cortázar de que o conto é um punch, como no boxe, no qual a gente
luta com o leitor e tem a chance de ganhar por nocaute. No romance, a
gente ganha por pontos. Acho que por trás disso está a capacidade
que a gente possa ter de tratar de um assunto de modo a manter o
leitor preso a cada parágrafo ou a cada página. O conto me
garante também a proximidade do final. É um tiro curto, são mil
metros no máximo, numa cancha reta, uma carreira de fôlego
curto.
ZH — E o que o leva a Don Frutos, um
romance de 600 páginas?
Schlee — Eu não tinha
alternativa. Estava atulhado de informação e comprometido com a
necessidade de abordar o fato de que Fructuoso Rivera, duas vezes
presidente do Uruguai, esteve em Jaguarão, minha terra... Um sujeito
desses passando pela minha cidade não pode me escapar. Então eu
tive que me atirar em cima dessa história, com a ajuda de um
pesquisador chamado Amilcar Brum, que se deu ao trabalho de ir a
Montevidéu para desencavar tanto material que eu poderia ter escrito
três livros, separando por temas. Por exemplo, coisas que não
aparecem muito no livro, como a intervenção brasileira, uruguaia e
argentina no Paraguai, que não está lá porque o Rivera morreu
antes. Mas eu tinha o tema do Rivera em Jaguarão e por ali
fiquei.
ZH — Don Frutos parece singular não
só pela extensão. É a única história em que o senhor enfoca
diretamente uma figura de poder. O fato de Rivera estar doente quando
chega a Jaguarão foi o elemento que tornou esse vulto “humano”
para ser abarcado pela sua ficção?
Schlee — Exato.
No primeiro capítulo do Don Frutos, a decadência física dele
é notória, com o homem se mijando, dependendo da mulher e de um
outro cara para ajudar a se movimentar, sem ter mais nada. E adiante
no romance, a morte do Rivera pode ser lida de várias maneiras, até
mesmo por quem domina a grande literatura uruguaia moderna, ao saber
que aquele militar que era o secretário particular do Rivera,
Onetti, era de fato parente do Juan Carlos Onetti. Há um falso
diálogo final, no qual Rivera se refere a seu ajudante Capitão
Onetti, que é feito com uma colagem de textos do Onetti
escritor.
ZH — Havia, então, uma dificuldade em
lidar com o caráter biográfico da narrativa de um símbolo
político, dificuldade expressa na estrutura do livro?
Schlee — Tem
outras coisas, como por exemplo a vinculação com os índios, ou o
fato de ele os ter traído ou não, aquela famosa matança dos
charruas. Eu estava sempre no fio da faca. O que eu tenho de
documentação real do Rivera, conseguida pelo Amilcar Brum, são
papéis do governo, da Assembleia Constituinte, da Câmara, do
Senado, das igrejas. Agora, biografias do Rivera, eu tive que
repassar todas as que havia disponíveis. Para as escritas pelos
blancos, o Rivera era um bandido, ladrão, safado. Para os colorados,
era um herói nacional, fundador do país. Eu tive que ficar em cima
disso, e em nenhum momento pretendi que o leitor acreditasse que ele
era bom ou mau, eu queria, como fiz em toda minha ficção, fugir do
maniqueísmo.
ZH — O senhor é conhecido no Rio Grande
do Sul e no Uruguai, mas não no Brasil. Crê que paga o preço por
lidar com um território ficcional tão restrito?
Schlee — No
Uruguai eu sou considerado autor uruguaio, e fiz parte de uma coleção
publicada pela editora Banda Oriental. Mas eu não quero me enganar
em cima de proporções. Se em um país com 3 milhões de habitantes
e um território menor do que o RS, se lá eu sou muito mais
conhecido, proporcionalmente, do que no Brasil, é porque não há
proporcionalidade cabível entre Brasil e Uruguai. A minha
literatura, que pode ser muito conhecida dentro do Uruguai, é
virtualmente desconhecida no Brasil, primeiro pela dificuldade
temática. O meu mundo literário tem pouco a ver com o Brasil. E não
sairei desse mundo em um esforço falso para ganhar leitores, porque
se eu deixá-lo, estou perdido.
ZH — O senhor lida
com o lado B da mitologia da formação do território. Quando
lança Contos de Futebol, esse olhar se dirige ao lado avesso de
outra mitologia, esta contemporânea, a do futebol. Foi um passo
consciente?
Schlee — Não, eu queria apenas escrever
um livro de futebol. A explicação está em um conto chamado Encanto
de Futebol, cujo título diz tudo. Esse “encanto de futebol”
contaminou uma série de coisas relacionadas à minha vida, o encanto
com o futebol uruguaio em particular. Por isso esse livro saiu
como Cuentos de Fútbol primeiro no Uruguai. É um livro
uruguaio, ainda que não tanto como o Limites do Impossível e
principalmente O Dia em que o Papa Foi a Melo.
ZH —
Em Contos de Verdades, o senhor escreve “causos”, mas
os chama de “verdades”, mesmo sendo histórias que se apresentam
como verdadeiras, mas podem não ser.
Schlee — Eu não
havia pensado nisso, mas é assim mesmo. Eu estou falando de
“verdades” nesse livro mais ou menos do mesmo jeito que se
desenvolvem os “causos”, as “fofocas”, para usar uma
expressão mais vulgar, e que dão origem à construção de uma
verdade que não é necessariamente verdadeira.
ZH —
Em Contos de Sempre e Uma Terra Só seus
personagens se expressam em uma mistura de espanhol e português,
como na fronteira. A partir deLinha Divisória, não apenas o
personagem no diálogo, mas o próprio narrador deixa um idioma
contaminar o outro. Por quê?
Schlee — Eu aprendi que
é possível o narrador assumir a maneira de ser do personagem,
deixando de narrar à sua própria maneira. Então, no momento em que
estou fazendo uma narrativa referente a um personagem, eu me sinto
autorizado a usar esse recurso. Porque há uma dificuldade muito
grande para qualquer autor que, como eu, trabalha com personagens
rústicos, geralmente pobres, sem educação formal, como são os
párias. Os meus personagens são os rejeitados da sorte. Essas
pessoas não têm a minha formação, mas têm seu próprio modo de
pensar. E quando tento reproduzir o pensamento deles, eu me sinto
autorizado a usar esse recurso. É uma coisa que eu vejo que
enriqueceu muito a literatura do Simões Lopes Neto, por
exemplo.
ZH — Os Limites do Impossível: Contos
Gardelianos é um livro em que o senhor mescla conto e novela ao
narrar uma trama única tecida das histórias das mulheres que
orbitaram o pai de Carlos Gardel. Como chegou a essa
história?
Schlee — Essa história eu resolvi escrever
no momento em que tive certeza de que era preciso denunciar as
arbitrariedades do então presumido pai de Carlos Gardel a partir de
tudo o que ele fez na política do Uruguai, mas particularmente em
relação ao nascimento desse filho, fruto de estupro e incesto.
Então achei que a narração não deveria se referir diretamente a
ele, mas às mulheres que tiveram a ver, direta ou indiretamente, com
o nascimento de Carlos Gardel.
ZH — O Dia em que o
Papa foi a Melo e Os Limites do Impossível, a bem dizer,
anteciparam respectivamente O Banheiro do Papa, longa ficcional
de Cesar Charlone, e o documentário El Padre de Gardel, que
teve uma sessão recente na Capital. Como vê essa circunstância,
uma vez que em ambos os casos não parece ter havido menção a seu
tratamento anterior do tema?
Schlee — O que eu fiquei
estranhando é o quanto sou desconhecido. O Banheiro do Papa tem uma
história que poderia ser inspirada no Conto V de O
Dia em que o Papa Foi a Melo, também chamado de Melo Era uma
Festa, com todas aquelas decepções dos personagens... O clima é o
mesmo, os acontecimentos correspondem, os caras que fizeram o filme
tiveram o mesmo sentimento que eu tive de identificação com aquelas
pobres pessoas que gastaram os últimos centavos que tinham, mataram
um leitãozinho de estimação roubaram uma capivara para poder
oferecer comida aos brasileiros, porque ia ter 40 mil brasileiros lá.
Eram pessoas não à procura de um milagre, mas buscando criá-lo, e
foram frustradas. O papa passou, virou lixo tudo aquilo. O filme
mostra uma ideia que está lá no meu conto, a de alguém que pensa
em fazer uma latrina. Mas o protagonista não está no conto, a guria
que queria ser radioatriz não está no conto, e aqueles personagens
me emocionaram às lágrimas. Não tenho do que reclamar, fico feliz
que tenham feito um filme tão bom. Esse documentário do Gardel eu
não vi. Os fatos, os acontecimentos históricos que sustentam a
minha ficção no caso dos Contos Gardelianos, são comprovados
e são os mesmos que devem ter sustentado o documentário. Não tenho
como me queixar de nada. Só fico com pena que estejamos tão perto e
tão longe do Uruguai ao mesmo tempo, o que comprova que meu mundo
literário é limitado e distante.
ZH — Contos da
Vida Difícil, seu livro mais recente, retrata um momento em que
Jaguarão se torna ponto de passagem do tráfico de mulheres – na
sequência da construção da ponte que liga a cidade a Rio Branco,
no Uruguai. Havia a intenção de confrontar essa ponte, signo de
passagem, com a situação dessas mulheres, presas à prostituição
no município?
Schlee — Bem observado. Se há alguma
possibilidade de encantamento com esse tema, como também em relação
ao futebol, é no fato de ser um assunto que Jaguarão considerou
necessário esconder e fazer de conta que não é parte de sua
memória. Isso aconteceu de uma forma que eu não procurei explicar,
porque eu próprio não encontro explicação. Por que esses fatos
raramente respingaram algumas famílias de Jaguarão? Por que a
maioria das pessoas de Jaguarão esqueceu disso? Por que não se fala
que o cabaré que foi tão importante, o do Tomazinho, ainda existe
como prédio pertencente a um clube social, o Instrução e Recreio?
Os sócios se envergonhariam de dizer “aqui funcionou um cabaré”?
Não sei se terá sido isso, mas os acontecimentos eram tão
contraditórios que em cima deles eu tinha de construir algo.
ZH —
O primeiro conto desse livro, Carnet de Divertissement, é sobre
um caderninho de nomes dos clientes dos cabarés. E o senhor o
compara textualmente a um “caderno de venda”. Essa frase tem o
intuito de equiparar as mulheres ali escravizadas a mercadorias de
comércio, ?
Schlee — Sim. Ao citar os fregueses cujos
nomes aparecem nesse caderno, estou denunciando que muitos deles
viraram nomes de rua e é melhor nem seguir adiante. É uma
justificativa em parte para essa minha narrativa estar rompendo com
esse pacto de silêncio e esquecimento.
Os livros
Contos
de Sempre (contos, 1983)
Uma Terra Só (contos,
1984)
O Dia em que o Papa Foi a Melo (contos, 1991,
publicado primeiro Uruguai, em espanhol, e editado no Brasil, em
português, em 1999)
Contos de Futebol (contos,
1997)
Linha Divisória (contos, 1998)
Contos
de Verdades (contos, 2000)
Os Limites do Impossível:
Contos Gardelianos (contos, 2009)
Don Frutos (romance,
2010)
Contos da Vida Difícil (contos, 2013)
Fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br Série obra completa26/10/2013