segunda-feira, 30 de maio de 2022

Jaguarão e Lago Merín - Refúgios de Belchior na Fronteira Sul

 

Programa Café da Manhã do DCM recordou a passagem
 de Belchior por Jaguarão e Lagoa Mirim- Aqui sendo recebido na Casa de Cultura


Montevideo - Rapaz Latinoamericano

O ano era 2010 e estávamos em Montevidéu, no famoso café Tribunales, à espera de um rapaz latino-americano que, em 1976, tinha 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Nada podia ser mais surpreendente para as nossas vidas provincianas do que estar ali, à espera dele, ainda que suas canções falassem de uma América que era muito próxima ao nosso cotidiano. Éramos fronteiriços, nascidos e criados entre um país-continente de língua portuguesa (a do Camões que ele tanto conhecia: Mas ando mesmo descontente/desesperadamente eu grito em português) e um continente de língua espanhola (a que ele por diversas vezes aludia em suas músicas inesquecíveis: El condor passa sobre os Andes/e abre as asas sobre nós/Na fúria das cidades grandes/Eu quero abrir a minha voz...).

Meses antes havíamos sido contactados por um amigo que trabalha na Casa de Cultura de Jaguarão, a nossa cidade. “O Belchior esteve aqui e eu o presenteei com um cd de vocês... ele e a companheira dele disseram que queriam falar com vocês... passei o número de telefone... disseram que vão ligar... acho que voltaram para o Uruguai”.

Belchior e a Edna, assim se chamava sua companheira, tinham estado em Jaguarão, do lado brasileiro da fronteira com o Uruguai, provavelmente para que ele conseguisse receber seus direitos autorais. Isso só descobriríamos bem depois.

Após alguns dias, efetivamente, o meu amigo, parceiro de grupo musical, mandou um recado dizendo que o Belchior, através da Edna, tinha mandado uma mensagem eletrônica onde falava que queria nos encontrar. Um único detalhe: eles estavam em Montevidéu e demorariam para voltar à fronteira. Perguntavam se não era possível irmos até lá, pois tinham algo importante para propor.

Assim começava para nós uma espécie de filme de espionagem, onde tudo sempre seria em meias palavras, ou em revelações impactantes sempre adiadas no último segundo. Porém, era o Belchior e não era só o nome dele que chamava nossa atenção. Sabíamos de cor suas músicas, suas letras de rebeldia jovem e singular e, também, conhecíamos algo que poucos sabiam - ou pensávamos que poucos sabiam: suas ligações com a música do Rio da Prata. Do Uruguai e da Argentina.

Há tempos havíamos descoberto que ele havia gravado com o duo folclórico Larbanois-Carrero e com uma amiga nossa, que cantava em nossos cds, Maria Conceição. Depois outra cantora participaria nesse trabalho, a excelente cantora uruguaia Laura Canoura. Ouvíamos também uma outra ótima cantora e atriz argentina, Sandra Mihanovich, que havia gravado diversas músicas suas. E, justamente, naqueles tempos pós 500 anos da chegada de Colombo, uma das canções que embalava nossas mentes de rebeldes latino-americanos, seguidores de ícones como Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra e Víctor Jara, era um contundente manifesto em defesa da América indígena, escrito por Belchior, e musicado pelo uruguaio Mario Carrero (do duo Larbanois): En America la nuestra/de açúcar, cobre y café,/ no hay motivo para fiesta,/ 500 años de qué?

Essa ligação belchiorana com o cone Sul da América talvez explique um pouco a razão de ter escolhido viver seu autoexílio no Uruguai. Lembro sempre que na minha parede de universitário, na república estudantil da cidade de Rio Grande, eu tinha a frase que marcou indelevelmente o que eu queria dizer nas músicas que eu um dia, por ventura, escreveria: O tango argentino me vai bem melhor que o blues. Eu sempre soube que não era algo contra a maravilhosa música afro-americana, claro que não. Era algo que dizia de forma genial que éramos latino-americanos, como Neruda, como García-Márquez, como Benedetti, como Guimarães Rosa. Belchior, para mim, havia dito tudo isso em uma simples frase. A dimensão disso é difícil de conceber. Muitos já disseram que o difícil é fazer o simples. E o que ele escreveu e cantou, em várias de suas obras é simples e simplesmente genial.

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Assim, voltando ao fio da meada, lá estávamos, minha esposa, meu amigo e eu, no Café Tribunales, na plaza Independência, centro de Montevidéu, esperando há algo em torno de meia hora, quando entrou o casal. Ela, pequena e falante, ele, quase indistinguível, escondido em uma gabardina pesada, que parecia um pouco fora de contexto, pois o frio não era tanto naquele dia. A gola alta deixava ver pouco seu rosto, porém a voz, nos raros momentos em que falou, tinha o sotaque e a tonalidade nasal dos discos que ouvíamos. Essas eram características inconfundíveis. Edna falou e falou, por duas horas ao menos, dizendo que estavam sendo perseguidos, principalmente por uma emissora de televisão que os havia encontrado no centro do Uruguai. E dizia enfaticamente que não poderíamos tirar fotografias pois mostrariam onde estavam e isso seria muito perigoso para eles. E assim, colocando um clima sombrio no ambiente, seguiu falando e falando. De tudo, além de umas poucas palavras do Belchior (ele sempre chamava seus interlocutores de “professor”), eu só recordo que notamos que não tinham como pagar o que pediram. Estavam com fome e isso podíamos perceber claramente. Pagamos de bom grado o que consumiram e, ao nos despedirmos, perguntaram se não podíamos nos encontrar no outro dia, na hora do almoço. Lembrei-me que esse era o título de outra de suas canções. Ela frisou então que o Belchior só comia peixes e frutos do mar. Lembramo-nos de um restaurante na orla de Montevidéu. Ártico, isso, Ártico, no bairro de Punta Carretas. Combinamos o encontro.

No outro dia - um desses em que o céu de Montevidéu não se decide entre uma chuva fina, a famosa llovizna, e um sol de inverno - chegamos ao restaurante. Eles já estavam lá, ao fundo, em um lugar em que se podia enxergar os campos onde havia alguns uruguaios jogando futebol, fazendo pouco caso do chuvisqueiro. Era sábado, dia ideal para exercício naquela orla magnífica.

Edna novamente conversou por todos, mas de vez em quando se ouvia o Belchior falando. Ao pronunciarmos esse nome, ela pediu que mudássemos para “Antônio”. O mistério aumentava. Respeitamos seu pedido e esse passou a ser o nome usado por nós desde então. Perguntamos se comia paella, assentiu. Creio que pedimos dois pratos grandes. Passou o tempo, conversas e conversas, sem a revelação do que eles realmente queriam de nós. Chegou a hora de fechar o restaurante. Edna perguntou se podiam sair conosco à noite para algum outro restaurante. Concordamos. Afinal, era para isso que tínhamos vindo a Montevidéu. Combinamos o encontro.

À noite nos encontramos na frente da parrillada El fogón, aonde sempre íamos em nossas estadias anuais na capital uruguaia. Essa parrillada, uma das melhores de Montevidéu, fica na calle San José, atrás da principal, 18 de Julio, bem no centro da cidade. Nessa noite aconteceu, embora poucos ali percebessem, um dos maiores encontros de músicos latino-americanos da região, pois, ao lado da nossa mesa sentou uma família em que um de seus membros era Daniel Viglietti, o compositor de A desalambrar, Milonga de andar lejos, Canción para mi América, e de outras pérolas do cancioneiro latino-americano. Tínhamos o seu disco A dos voces, com o poeta Mario Benedetti. Um dos trabalhos artísticos fundamentais para quem quer conhecer algo da cultura e da música uruguaia. Belchior, ao vê-lo ali tão perto, em um gesto marcante, fez questão de se levantar e ir falar com seu colega uruguaio. Conversaram um pouco, não mais que 5 minutos, e ouvi que ele dava um “bom proveito” para os que estavam em volta da mesa do Viglietti, despedindo-se. Sobre o que falaram não sabemos. Achei que não me cabia perguntar. Gosto de pensar que falaram de alguma música, de alguma parceria possível, de outros artistas de sua geração, de amigos comuns, ou de encontros que tiveram em festivais pelo mundo.

Daniel Viglietti ao centro
Show no Theatro Esperança de Jaguarão 1998

Na saída do El Fogón, Edna pediu para que os deixássemos onde estavam hospedados. Era um pequeno e velho hotel na rua logo abaixo da San José, mais próxima à rambla (orla). Uma zona menos iluminada e um pouco menos segura. Até os dias de hoje, sempre que vou a Montevidéu, passo em frente ao lugar e relembro a cena. O hotel fica na calle Soriano, já próximo ao seu final (ou seu início), umas três ou quatro quadras do Teatro Solís e do mágico bar Fun Fun (aquele que tem a assinatura do Carlos Gardel no balcão). Antes de deixarmos o casal no hotel, que não recordo o nome, combinamos pegá-los no dia posterior para irmos até a feira de Tristán-Narvaja, no bairro Cordón, evento que sempre ocorre aos domingos sobre as ruas desse mesmo nome.

Ali, sentaram-se em um banco um pouco longe da feira, pois não quiseram percorrê-la conosco. Certamente para ele não ser reconhecido. Sem dar espaço a contra-argumentos, a Edna disse que nos esperariam para a despedida. Quando voltamos estavam ali, no mesmo lugar. Edna então pediu para que arranjássemos um lugar para eles do lado uruguaio da nossa fronteira. Foi com essa proposta na mente que nos despedimos. E partimos rumo ao Brasil, para Jaguarão, com 420 km de estrada plana, tendo a verde e bucólica campanha uruguaia em nossa visão. Essa paisagem é sempre um bálsamo para quem gosta de viajar.

Jaguarão - Lago Merín – Divina comédia humana

Lago Merín - UY - O paraíso ecológico que acolheu Belchior

Mais de dez anos já se passaram, velozes, fugazes como aqueles momentos de Montevidéu e do novo encontro, e cá estou eu, tentando juntar cacos de memórias de imagens que não deveriam ser definitivas, mas que, infelizmente, foram. Sempre pensei que encontraria o Belchior outra vez – e reviveríamos tudo outra vez (outro título de uma de suas canções) - em um show, ou em algum restaurante, talvez em Porto Alegre ou em outro local, onde ele, cercado de fãs, dando autógrafos e sorrindo por baixo do imenso bigode, reconheceria em nós os guris de Jaguarão que foram a Montevidéu encontrá-lo. Diria certamente: “Como vai, professor?”.

Creio que era julho, mas poderia ser agosto, quando fomos encontrá-los novamente. Desta vez em Rio Branco, a cidadezinha uruguaia que fica do outro lado do rio Jaguarão. O combinado por mensagem era que eles desceriam antes do terminal de ônibus, no lugar em que se fazem os documentos de entrada e saída do Uruguai, os vistos, no chamado Passo de Fronteira. Eu havia trabalhado ali e conhecia cada recanto dessa construção. Mas jamais esperava que estivessem sentados, sem malas, no banco que fica do outro lado em relação àquele que chegávamos, ou seja, do lado que aponta para Montevidéu, de onde eles tinham vindo. Por isso passamos diretamente da primeira vez, sem vê-los, e só quando empreendemos a meia-volta com o veículo, já achando que não tinham vindo no ônibus da Expreso Rio Branco, é que nos deparamos com a cena. Os dois sentados, sem nem fazer menção de estarem preocupados com uma não vinda nossa e com apenas uma única maleta como bagagem. Ainda hoje é essa a imagem que mais nos marcou de seus encontros. Ambos ali imóveis, num banco de estação, olhando para o Sul da América, para a imensa planura uruguaia. Esse quadro da memória sempre me lembra a música Carito do argentino León Gieco (para mim um Belchior, em sua versão platina): Sentado solo em um banco en la ciudad/con tu mirada recordando el litoral...

Havíamos conseguido uma casa com uma amiga de Rio Branco, Helen Noble. Seu marido havia morrido faz pouco. Ambos eram os grandes amigos que tínhamos do outro lado do rio. Estavam sempre envolvidos com questões artísticas e de integração. Pouco antes da partida do Carlitos - o marido, que era cantor de murga (maravilhoso teatro cantado uruguaio) e edil (vereador) local – o casal tinha levado o nosso grupo ao Fórum Social Binacional realizado no Chuí. Sensível, solidária, ativista cultural, ela era a pessoa indicada para emprestar uma casa para um artista como o Belchior. E assim foi, de muito bom grado, sempre magnânima, entregou-nos a chave. O lugar onde os hospedamos, Lago Merín, é um balneário tranquilo que fica a uns 20 km de Jaguarão, do lado uruguaio, como eles haviam pedido que fosse. É uma praia de água doce que só tem um movimento considerável nos meses de janeiro e fevereiro. Nos outros, ficam ali só umas duas ou três dezenas de moradores, quando muito. Assim, era certo que não teriam muito com que se preocupar sobre possíveis encontros não desejados. Quanto à alimentação, traríamos tudo o que precisassem uma ou duas vezes por semana. E podiam sempre contar com os peixes que eram pescados na noite anterior, de um ribeirinho que morava a uma quadra da casa da nossa amiga.

La casa de Helem, refúgio de Belchior no Lago Merín

Tudo correria bem, não fossem alguns senões. Mas, porém tem um porém... A casa era de praia e a Edna logo fez questão de mostrar que não estava à altura do que esperava de nós. Sempre que íamos, ela falava de uma casa melhor, mais nova. Quanto ao Belchior, posso afirmar que jamais reclamou de nada. Há que se dizer também que essa casa segue sendo alugada e que ainda nos parece muito propícia para um veraneio em um paraíso natural como é o balneário Lago Merín. Tempos depois foi a mesma casa em que viveu por 6 meses o filho do Atahualpa Yupanqui, para quem conseguimos hospedagem da mesma forma. Até hoje, O Roberto Chavero, conhecido por Coya Yupanqui, que mora na província argentina de Córdoba, fala em retornar e veranear na mesma casa.

Voltando ao Belchior. Nesses meses de convivência na fronteira, tivemos uma dúzia de encontros. Pouco mais ou pouco menos, não recordo todos. Lembro-me de alguns deles. Uma janta no restaurante do hotel, vários peixes assados na grelha, diversos passeios com ele sempre escondido no banco de trás do veículo. Tudo fica bastante difuso quando as imagens e os locais se repetem.

Lembro que ele pediu material para pintura. Em seguida conseguimos. E vimos que pintava impressionantemente bem. Anos depois o amigo, jornalista e crítico musical, Juarez Fonseca, uma das maiores autoridades sobre música do Brasil, mostrou-me algumas pinturas e desenhos do cantor, a maioria com imagens do Carlos Drummond de Andrade, os quais recebera como presente e haviam sido publicados anteriormente por uma revista e também publicados em um livro em parceria com o cartunista Mino. Eram estupendos. Aliás, esse termo “estupendo”, era um que ele utilizava bastante. Naquele então, no seu autoexílio no Lago Merín, na casa da Helen, vimos que ele fazia de cavalete uma mesinha, forrada com uma toalha de linho, onde distribuía os pincéis harmonicamente.

As pinturas do Drummond, álbum especial, presente aos leitores da revista Caras. 
 Os desenhos, livro do Belchior em parceria com o cartunista Mino.

Em uma das primeiras tertúlias que fizemos recordo que pedimos para que cantasse algo. Edna interveio dizendo que ele não podia, pois a gravadora não permitia. Em outra vez, o meu irmão, depois de cantar uma música, em um gesto espontâneo, passou o violão para ele. Foi uma expectativa imensa quando vimos que tomou o violão em suas mãos. Ela estava em outra sala, mas percebeu o que ocorria, talvez pelo silêncio expectante do momento, e chegou logo dizendo que ele não podia, repetindo que estava proibido terminantemente pela gravadora. Nunca soubemos a que gravadora se referia. Ele, constrangido, entregou o violão, concordando com ela que não podia cantar, mas completou que recitaria uma poesia do Baudelaire e prontamente nos brindou com um excerto que creio ser de Fleurs du mal, em um francês que para nós, brasiguaios, sem muito conhecimento do idioma de Victor Hugo, pareceu-nos (e devia ser) perfeito. Penso que lembrei logo, sorrindo, que era também contraditório, pois ele havia dito muito antes: Minha fala nordestina/quero esquecer o francês...

Nessas noites de encontro com eles nos fundos da casa da Helen, onde ficava a parrilla para os assados, levávamos um amigo nosso árabe, conhecido por ser bom cozinheiro e, também, por estar sempre disposto para uma festa. Era ele quem assava os peixes para o “Antônio”, descobrindo os gostos culinários do cantor. Sempre recebia em troca palavras elogiosas para o tempero e a textura dos peixes que preparava. “Estupendo”. Em uma dessas vezes, ele, para agradar, resolveu fazer uma torta especialmente preparada segundo as preferências do Belchior. Para sua surpresa, quando, depois da janta, trouxe do carro a iguaria, foi cortado abruptamente pela Edna, que logo atalhou dizendo que ele não poderia comer algo que era nocivo à sua saúde. E que ele não poderia nem mesmo ver a torta, fazendo com que o Said, o amigo árabe (chamado de turco, como todos seus compatriotas da fronteira), com a torta ainda sendo equilibrada perigosamente na mão, voltasse quase instantaneamente com a sua surpresa para o nosso carro. No momento rimos muito da cena. O “turco-árabe-palestino” não gostou nada do que ocorreu e lembra até hoje da afronta.

Por último, recordo que montamos uma estratégia. Enquanto minha esposa conversava com a Edna, eu falaria com o Belchior. Nas poucas palavras que dizia, ele sempre gostava de falar comigo sobre literatura e um pouco de filosofia. Falava que estava trabalhando em umas traduções, creio que do Dante. Como eu tinha diversos livros que poderiam lhe interessar, combinamos que eu levaria alguns para que ele pudesse retomar seu hábito de leitura. Disse-lhes alguns títulos, ele escolheu os que queria, ou que não tinha lido. A memória pode me enganar, mas se não recordo com clareza, ao menos imagino um brilho diferente em seu olhar, ou mesmo um leve sorriso.

No próximo encontro, que foi o último, levei os livros que me pediu. Pedro Páramo, Por quem os sinos dobram, Sobre heróis e tumbas... creio que eram esses. Quero, mas não consigo recordar como foi exatamente a despedida. Havia um certo clima diferente, porém nunca fui dado a percepções mais detalhistas. Tenho para mim que deve ter sido somente um “até mais, professor”, como das outras vezes.

O certo é que, alguns dias depois, recebi uma mensagem eletrônica onde o contato deles dizia:

Prezado. Falei com a Edna e com o Belchior, e eles me pediram para te enviar este recado: Agradecem pelo empréstimo dos livros e DVDs. Os seus pertences estão na casa da sra. Helen. No entanto, outros dois livros seus e um livro e canetas da sra. Helen ficaram no hotel em seu nome, onde eles disseram que jantaram com vocês uma noite. Até. Rafael.

Assim, abruptamente, terminavam os nossos encontros com o Antônio, mais conhecido por Belchior, um dos poetas-músicos-filósofos mais importantes da música brasileira e latino-americana.

Em respeito ao que nos foi pedido, jamais tiramos uma fotografia ao seu lado. Nem em Montevidéu, nem no Lago Merín. Essa não-evidência em imagens é justamente o que nos faz sentir mais próximos a ele. Tenho certeza de que se ele tivesse seguido seu caminho natural e nos encontrasse hoje em dia, certamente diria, com seu maravilhoso sotaque nordestino: “Obrigado, professor!”.

P.S.:

Tempos depois eu soube que o Belchior seguiu vivendo mais um ou dois meses no Lago Merín, hospedado por um conhecido personagem local. A prova inconteste disso era uma série de fotografias. Fotografias... e não eram 3x4. Eis a divina comédia humana. Soube também que houve um dia em que uma das músicas dele, de eterna incompreensão, de alguma forma havia se materializado em Jaguarão. Mas por favor, não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor....

Nesse dia, a Leci Brandão tinha vindo fazer um show na cidade. Ao saber disso, Belchior conseguiu que o levassem discretamente de carro até a frente da Casa de Cultura, local onde a cantora estava aguardando para a hora do espetáculo que iria se realizar no Largo das Bandeiras, o ponto central de Jaguarão. Então, segundo o que me foi contado, ele pediu para alguém avisar a Leci que “o Belchior queria falar com ela”. A Leci, obviamente, ficaria surpresa com a notícia e, também, obviamente - imensamente solidária como sempre foi, ativista cultural, além de cantora da gema -, iria ao encontro do famoso colega na mesma hora. Mas qual? Um dos promotores do evento, talvez se arvorando de protetor da contratada, simplesmente barrou o mensageiro e, ainda pior, barrou a própria mensagem. Creio que a Leci nunca soube do fato e o Belchior voltou para o balneário como um simples adolescente que fora barrado em um baile. Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria, examinando o três-por-quatro da fotografia....


Sim, Antônio, ou melhor, Belchior, tinhas razão, sempre tiveste razão. O tempo passa, as gerações mudam, mas ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Martim César - Jaguarão, maio de 2022. 

Clandestino - Gilberto Isquierdo e Said Baja

  Assim como o Said, milhares de palestinos tiveram de deixar seu país buscando refúgio em outros lugares do mundo. Radicado nesta fronteir...