domingo, 26 de janeiro de 2014

Jards Macalé - Um morcego na porta principal


SÃO PAULO (Reuters) - Logo no início, o documentário "Jards Macalé - Um Morcego na Porta Principal" dá uma pista de que não vai ser uma homenagem convencional ao seu protagonista.
Um irritado Jards Macalé vocifera para o cineasta Marco Abujamra (um dos diretores): "Olha que eu posso processar vocês!" O motivo da bronca é que o cantor, músico e compositor carioca não tem certeza de que vai deixar-se retratar pelo filme. Quando o diretor pergunta qual é o seu medo, ele dispara: "O medo de que vocês desconstruam tudo o que construí - minha vida."
E é assim mesmo, bronqueado, irreverente e franco que Macalé vai sendo revelado no filme, um pequeno mapa da identidade deste músico que andou perto do Tropicalismo, mas não foi sócio do clube, esteve em todos os momentos e lugares onde isso era importante - como o show "Opinião", em 1964 - e resistiu à ditadura militar com sua arte. E também dono de uma obra como compositor que é, infelizmente, subavaliada.
Macalé não é um medalhão da música brasileira, assim como Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa - e essa é uma injustiça que o filme de Abujamra e João Pimentel, vencedor do Prêmio do Júri do Festival do Rio de 2008, procura reparar.
E assume esta causa sem esbarrar na condescendência que contamina tantos documentários, inclusive os que tem protagonistas dignos de tantos louvores, como é o caso deste.
Macalé aparece possuído de sua peculiar mistura de ira santa contra as mazelas do mundo, combinada a uma ironia peculiar.
Assim, o tijucano Macalé enumera a mistura de influências recebidas em casa, da mãe e da avó que cantavam Vicente Celestino, do pai que tocava acordeon e adorava ópera e também das batucadas de samba ouvidas ao pé dos morros do Rio.
Violonista, ele cruzou seu caminho nos bares da zona sul com Baden Powell. Brigou com Dori Caymmi, ficando sem falar com o cantor por três anos só porque mudou um acorde de sua composição, "Tarde Demais". Episódio que hoje os dois lembram rindo.
Não era essa a guerra de Macalé, nem de sua geração, que enfrentou a ditadura. Assim, Macalé junta-se a Bethânia no palco do histórico show "Opinião", ela substituindo Nara Leão, ele, Roberto Nascimento, no violão. Bethânia, aliás, morou alguns meses na casa de Macalé. Uma casa em ebulição onde, como ele lembra, Caetano, Torquato Neto, Capinam e Rogério Duprat discutiram a Tropicália.
Com alguns dos amigos partindo para o exílio, como Gil, Caetano e Chico, Macalé fica no enfrentamento com a censura e o sufocamento político. Nem sempre é compreendido. Em 1969, no Festival Internacional da Canção, é sonoramente vaiada sua composição "Gotham City", parceria com Capinam, cuja letra sobre a existência de "morcegos e abismos na porta principal", traça um evidente paralelo entre o clima dos anos de chumbo e a sombria cidade do heroi Batman.
Batalha maior foi vivida em 1973, quando foi chamado a participar, com outros artistas, da comemoração aos 25 anos da Declaração dos Direitos Humanos no Museu de Arte Moderna do Rio. Macalé comparece com seu show "Banquete dos Mendigos" - alusão ao álbum dos Rolling Stones, "Beggars' Banquet", de 1968. Lida em público a Declaração dos Direitos Humanos, que mencionava tortura e outros temas proibidos pela censura, o museu, cheio de artistas, foi cercado pela polícia.
Macalé ainda seria preso - por sete horas - depois de um show em Vitória (ES), do qual participou o veterano sambista Moreira da Silva. Uma prisão que teve momentos hilariantes, diante das tentativas de Moreira de livrar a cara do amigo, aproveitando o fato de que tinha fãs entre os policiais.
Se há uma coisa que enfurece Macalé ainda é o rótulo de "maldito", que uma parte da mídia costuma pregar-lhe há décadas. Ele odeia este selo, que costuma ser estendido também a artistas como Jorge Mautner, Luiz Melodia, Tom Zé. Para o músico, isto nada mais é do que uma maldição jogada por gravadoras, contra as quais ele se bateu a vida inteira.
O lado poético e anarquista de Macalé, entretanto, flui a todo momento. Como quando ele fala de seu sonho de ver a palavra "amor" inserida na bandeira brasileira, ao lado de "ordem e progresso". Macalé é assim, esta indissociável mistura entre fúria e paixão.
Fonte: http://cinema.uol.com.br/

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