No vídeo acima, registrado na II Feira Binacional do Livro de Jaguarão, em dezembro de 2011, Aldyr Garcia Schlee nos fala sobre seu projeto de escrever o livro "Contos com Espelhos" onde seus contos dialogam com os contos Borgianos.
Narra seu encontro, ainda menino, un "niño guapo", como lhe diria o escritor e poeta uruguaio Enrique Amorin, com Jorge Luis Borges no Hotel Italiano em Rio Branco.
Imagens de Borges : Galería de escritores y artistas de 1928 a 1959 por Enrique Amorim
Hotel Italiano em Rio Branco, anos 40, cenário do encontro entre Schlee, Enrique Amorin y Jorge Luis Borges. |
Meu encontro com Amorim (e Borges)
Aldyr Garcia Schlee
SEMPRE tive de Enrique Amorim uma impressão que não é a de quem o conheceu realmente; e jamais será a verdadeira, pois na única vez em que nos encontramos, não recordo que cheguei a vê-lo e não me lembro se me animei a falar-lhe, embora ele houvesse me visto e me tivesse dito ola, qué niño guapo, quando eu tinha seis ou sete anos e me levaram pela mão a Río Branco e me puseram diante dele e disseram depois que ele estava lá sim, bem sentado numa poltrona de vime no restaurant do hotel do Boroni, e tomava três dedos de fernet blanca num copo com água de sifón, ao lado de um enigmático amigo argentino que o vinha acompanhando sem pressa numa comprida viagem de automóvel ao longo da fronteira brasileira, parece que desde Salto a Artigas, depois a Santana do Livramento, por Tacuarembó, e de lá – quem sabe – a Bagé ou Aceguá, até Melo para, finalmente, chegar aqui, do outro lado do rio Jaguarão, hospedando-se ali mesmo, em Río Branco.
Se Enrique Amorim dispôs-se a atravessar a Ponte, vindo a Jaguarão, não sei; não soube nunca e não perguntei a ninguém. Desde então, muito tempo passou, apagando definitivamente de minha memória as improváveis lembranças que eu teria do autor uruguaio; e só outro dia fiquei sabendo que quem o acompanhava na viagem, como a própria razão de ser daquele longo périplo mítico sobre os coincidentes limites extremos do Norte uruguaio e do Sul brasileiro, num “país indocumentado”, era Jorge Luis Borges.
Hoje, passados de sessenta e sete a sessenta e oito anos, o anoso prédio do Hotel está transfigurado numa asséptica e arcondicionada duty free de artigos importados, onde já não sobram mais do que a bela fachada, na calle General Artigas e, pela calle General Rivera, diante do Banco de la República, a grossa parede lateral de dois pisos (nesta, não terá havido reboco nem pintura suficientes para apagar uma clara cicatriz em forma de porta, que perdura até hoje*, entre as vitrinas de baixo e sob as janelas de cima, denunciando que ali existira uma saída para a rua).
Hoje, de Enrique Amorim já li quase todos os livros, já traduzi muitos de seus contos, já repassei grande parte de sua correspondência, já tive acesso a muitas de suas imagens fotográficas; mas, mesmo assim, não consigo imaginá-lo como ele terá sido na poltrona de vime do restaurant do hotel do Boroni, bebendo fernet-blanca. Não chego a reconhecer nas fotografias o homem sério de rosto comprido e magro, de testa alta e olhos distantes; não consigo ouvi-lo repetir qué niño guapo com a sua mesma voz que está gravada em disco e preservada pela História.
O Henrique Amorim que me terá conhecido, eu o imaginei outro: gordo e de terno branco – como meu tio Carlos; talvez de óculos como Zé Lins; ou capaz de grandes gargalhadas por nada, como o Amorim marido de uma tia de minha futura mulher. Aquele, o que a mim me terá dito ola, aquele era outro – que não reconheço; que não era gordo nem usava óculos nem dava grandes gargalhadas; mas era muito rico, ilustrado e viajado, exatamente como o padrinho de minha irmã (o padrinho de minha irmã, esse tinha uma grande biblioteca, uma tentadora amante francesa, e passava todos os invernos no Rio de Janeiro, onde mantinha auto com chauffeur, dispondo permanentemente de apartamento no Hotel Avenida).
De Amorim, desafiam-me retratos sobre a mesa. Como reencontrá-lo e reconhecê-lo agora, nessas fotografias antigas, se nunca o encontrei de verdade ou o conheci de mentira em minhas lembranças, apesar de sempre ter guardado e resguardado em meus olvidos sua imagem?
Esforço-me como se quisesse reencontrá-lo e reconhecê-lo nessas fotografias, de onde me olha como nunca o vi, entre gentes conhecidas e desconhecidas, homens e mulheres, sempre muito sério ou muito sorrindo, às vezes de chapéu bem posto, às vezes de cabeça descoberta, com seu mesmo cabelo penteado com gomina e repartido do lado. Uma vez está em 1943, como teria estado em Rio Branco, dois ou três anos antes, diante de mim, ao lado de seu companheiro de viagem e do padrinho de minha irmã; mas está também em 1945, encarando-me de frente, ao lado de Nicolas Guillén, Cândido Portinari e Toño Salazar; mirando-me firme como George Raft, ameaçadoramente como George Raft, bem como George Raft; e não me adianta admirar a risada aberta de todos os dentes de Guillén ou o contido sorriso de simpatia de Portinari, nem o risinho coadjuvante de Toño Salazar.
O padrinho de minha irmã, sabe-se lá de que forma, fora encarregado por Amorim de reservar-lhe habitação no hotel do Boroni, o Hotel Italiano, que todos tínhamos como um refinado estabelecimento hoteleiro. E conseguiu mais do que arranjar aposentos para Amorim e Borges: ele conseguiu que o Boroni abrisse uma porta diretamente do quarto reservado para a rua, na lateral do prédio, garantindo a privacidade dos dois hóspedes e dispensando-os de entrarem pelo restaurant do hotel.
Eu tinha, seis ou sete anos: só sei dessas coisas por ouvir contar; mas nunca as esqueci, na esperança de imaginar -- como se relembrasse -- o que foi dito e visto, aquele dia imemorável, numa mesa do Hotel Italiano, antes que a marca tumular da porta aberta na parede se transformasse no único testemunho concreto de meu encontro infantil com Henrique Amorim. E Jorge Luis Borges!
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* Entre maio e julho de 2010, o autor esteve sem ir a Jaguarão. Quando voltou, já não encontrou a porta, a marca da porta, a marca da porta empedrada na fachada lateral do antigo Hotel Italiano, quase na esquina, diante do Banco de la República, em Rio Branco. O prédio fora, finalmente, reformado – para atender à necessidade de esconder suas feridas e revelar sua pulcritude climatizada. Mas restaram fotos de como tudo era; de tudo como fora antes.
Foto:Luis Carlos Vaz |
Los hermanos Azpiroz, Esteban, Rufina y Simon. Provavelmente sentados nas poltronas de vime do Hotel Italiano |
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