quarta-feira, 16 de abril de 2014

Brasil, Argentina e o Cone Sul

José Luis Fiori

Pela primeira vez, países que comandaram, em rivalidade, desenvolvimento da América do Sul, aliaram-se. Com qual sentido? Enfrentando que oposição de Washington?

A extensão da bacia hidrográfica Rio do Prata, e a imensa fertilidade de suas terras, explicam, em boa medida, a importância estratégica do Cone Sul, dentro do sistema internacional. A Bacia do Prata, constitui uma região geoeconômica plana, contínua e relativamente homogênea, que atravessa fronteiras e integra partes importantes dos territórios argentino, uruguaio, paraguaio e boliviano, e do próprio território brasileiro, banhado pelo Rio Paraná, e pelos seus afluentes, Paranaíba, Grande, Tietê e Paranapanema. Essa região de enorme potencial econômico, foi transformada num só tabuleiro geopolítico, pelas “guerras de independência”, e pelas “guerras platinas”, que se sucederam até a segunda metade do século XIX, culminado com a Guerra do Paraguai, que marca o início da competição secular entre a Argentina e o Brasil, pelo controle do Cone Sul. Um século, exatamente, em que a Argentina se transformou no primeiro grande “milagre econômico” da América do Sul, entre 1870 e 1940; e em que o Brasil se transformou no segundo grande “milagre econômico” do continente, entre 1937 e 1980, completando ao final, mais de cem anos de alto crescimento contínuo, dentro de uma mesma região, algo absolutamente incomum na história do desenvolvimento capitalista.

O take off do “milagre econômico” argentino ocorreu logo depois da Guerra do Paraguai, e da unificação definitiva do estado argentino, na década de 1860. Obedeceu a uma estratégia geopolítica claramente expansiva e de disputa pela hegemonia do Cone Sul, com o Brasil e o Chile. Essa estratégica orientou, desde o início, as guerras argentinas de conquista territorial do oeste e do sul, assim como seu desenvolvimento econômico e sua aliança quase incondicional com a Inglaterra. Entre 1870 em 1930, a economia argentina cresceu a uma taxa média anual de cerca de 6%, e no início do século XX, a Argentina havia se transformado no país mais rico do continente sul-americano, e na sexta ou sétima economia mais rica do mundo, com uma renda per capita que era quatro vezes maior que a dos brasileiros, e quase o dobro da dos norte-americanos, naquele momento. Nessa hora, a Argentina teve todas as condições para se transformar na potência hegemônica da América do Sul, e numa importante potência econômica mundial.

Mas não foi isto que aconteceu, depois de 1940, quando a Argentina entrou num longo processo entrópico de divisão social, e crise política crônica, ao não conseguir se unir em torno de uma nova estratégia adequada ao contexto geopolítico e econômico criado pelo fim da II Grande Guerra, pelo declínio da Inglaterra e pela nova supremacia mundial dos Estados Unidos. Como se fosse uma sequência ou consequência quase direta dessa desaceleração argentina, o Brasil viveu o seu próprio “milagre econômico” – entre 1937 e 1980 – orientado por uma estratégia igual e contrária, de resposta e superação do desafio argentino, através de uma política de rearmamento das Forças Armadas e de desenvolvimento e industrialização da economia brasileira. Essas ideias foram elaboradas e amadurecidas durante as duas primeiras décadas do século XX, mas só foram implementadas de forma sistemática e consistente a partir da década de 30, quando a economia brasileira cresceu à uma taxa media anual de 7%, ultrapassando a Argentina e transformando-se na principal economia da América do Sul.

Mas esse quadro favorável e de crescimento contínuo foi alterado pela crise econômica e pelas mudanças geopolíticas da década de 70, quando o governo brasileiro foi obrigado a redefinir sua estratégia de inserção internacional, e sua própria política de desenvolvimento econômico. Foi nesse momento que governo militar do general Geisel propôs a transformação do Brasil numa “potência intermediária”, e num “capitalismo de estado”. Mas esse projeto dos militares brasileiros foi atropelada pela politica externa, pela politica econômica internacional dos Estados Unidos e pela oposição de uma parte das elites que haviam apoiado o regime militar.

Nessa história, o importante é entender que os “milagres econômicos” da Argentina e do Brasil, nos séculos XIX e XX, foram orientados por duas estratégias opostas de competição econômica e militar, pela hegemonia do Cone Sul. Essas estratégias foram formuladas internamente, mas acabaram sendo estimuladas e instrumentalizadas pela Inglaterra e pelos EUA, como forma de equilibrar as forças e neutralizar o poder expansivo do próprio Cone Sul. Desse ponto de vista, o novo projeto do Brasil e da Argentina — a construção de uma “zona de co-prosperidade” e de um bloco de poder sul-americano — é, de fato, uma revolução, na história do Cone Sul. Mas trata-se de uma estratégia que só poderá ter sucesso no longo prazo, e que enfrentará uma oposição externa e interna, ferrenha e permanente, dos EUA e dos partidários locais do “cosmopolitismo de mercado”. Nesse ponto não há como enganar-se: todo e qualquer sucesso dessa nova aliança, e dessa nova política do Brasil e da Argentina, será sempre considerado como uma “linha vermelha”, para os interesses dos EUA e de sua rede de apoios dentro continente, defensora da submissão estratégica e econômica da América do Sul à politica internacional dos Estados Unidos.


Publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 02/04/2014


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