Benedetto Croce |
Com data de 1º de
janeiro de 1913 Benedetto Croce assina um manuscrito que enviaria por
correio à universidade de Houston, Texas, contendo o seu Breviário
sobre estética. Completavam o volume quatro lições sobre o
tema. Na primeira delas, sob o título de “O que é arte?”,
afirma o autor italiano que a resposta para tal pergunta poderia ser
dada em forma de piada, já que, segundo ele, “a arte é aquilo
que todos sabem o que é”, pois considera que se não tivéssemos
alguma informação a respeito, tampouco a pergunta poderia ser feita
(CROCE, 1938).
Um livro que começa
desse modo, creio eu, promete-nos ser como um diálogo entre amigos,
caloroso, vivificante e de grande proveito. Há nele esse ar de
conhecimento humanista e otimismo esperançoso e romântico, tão em
voga entre os escritores europeus de seu tempo, quando o mundo ainda
conservava certa saúde mental e alguma decência nos costumes.
O fascismo e as
duas Guerras Mundiais mudariam esse ambiente burguês de cultura
afrancesada e tudo começaria a desmoronar aos poucos. Em tal
cenário, também as artes se ressentiriam, cedendo o espaço a
movimentos da contracultura ou experimentais, como o cubismo (1912),
o dadaísmo (1916), o surrealismo e a música dodecafônica (1921).
O novo século XX,
da modernidade risonha, que vira surgir Charles Chaplin com seus
filmes de profundo humanismo e humor reflexivo, que acreditava (ela,
a modernidade, não Charlot) na ortodoxia positivista de uma
civilização industrializada em constante progresso, e de
capitalismo em expansão, que o próprio Chaplin retrataria com
grande agudeza e hilaridade em “Tempos modernos” (1936), daria
passo em breve a uma humanidade estressada, neurótica e
individualista.
Reflexão oportuna
a de Ernst Cassirer (2005), quem nos diz que a arte é uma
intensificação da realidade, enquanto que a linguagem e a ciência
são uma abreviação da mesma. Nesse sentido, a “intensificação”
da realidade que hoje nos acolhe pode dar-se numa vertigem
psicodélica de cores e formas abstratas ou sons repetitivos e com
efeito hipnótico: as primeiras como se fossem frutos de uma
psicografia, e estes na forma de um produto enlatado, maquiado,
equalizado e acrescido de efeitos mnemotécnicos e insuflados com uma
grande dose de narcisismo, explícito ou subliminal.
O nosso tempo
também poderia ser descrito como uma metáfora do mito bíblico da
torre de Babel: as línguas nele se confundem, as culturas se
misturam, os povos migram ou fogem da seca, da fome, do desemprego ou
das guerras. Mas, outrossim, a globalização nos permite comer numa
tigela chinesa um sushi japonês ou uns capeletti da Sardenha,
bebendo um vinho chileno ou uma cerveja dinamarquesa, enquanto
paqueramos um tablet recém comprado num shopping center ou na loja
da esquina.
A internet nos
apresenta todos os temas da cultura do mundo, em todas as línguas,
ainda que persista um dos grandes paradoxos desta contemporaneidade:
a mecanização, que nos prometia economizar tempo, veio com a
sua data de validade vencida, ou lemos mal o manual: o relógio
parece-nos andar muito depressa, e “ele”, o tempo, enquanto
enigma metafísico, figura da linguagem, axioma einsteniano ou kuan
do zen budismo, se relativiza, negativamente, encurtando-se.
Fazemos tudo às
pressas, e ainda assim, a fruição da vida nos deixa com o apetite a
meio resolver e, pior ainda, quanto mais pressa temos, nossa
existência mais fugaz nos parece. Como um polster geist
incorpóreo, o tempo continua a debochar de nós e de toda a nossa
cultura científica e tecnológica, na qual parecemos estar cada dia
mais atrapados, como num beco sem
saída.
Há maior
necessidade de informação e se nos exige uma mais completa ou
específica formação profissional, a procura de um emprego melhor,
ou simplesmente de um emprego qualquer que nos pague o pão e o teto.
As pessoas viraram escravos dessa agoniada pressa mecânica e
psicológica, e o destino da maioria se resumirá apenas a envelhecer
encalhados no trânsito poluído das grandes metrópoles, no instante
mais inoportuno, morrendo vítimas de estresse crônico, e crendo ter
visto, ou anelando ter visto tudo e muito mais, numa bulimia de
experiências e sensações que jamais foram plenamente compreendidas
e satisfeitas.
Entre somas e
restas, o que nos justifica e estimula, como futuros produtores
culturais, é a terra prometida de uma demanda in crescendo, a
incubar-se na sociedade, e que nos veria surgir ao cenário
profissional como Hermes, o dos pés leves, arauto dos deuses,
impelidos por promessas sedutoras, que tomara não nos reservem a
sorte sofrida pelos argonautas comandados por Ulisses, nos mares
tumultuosos dos quais as sereias talvez já foram expulsadas, ou
cumprem humilhante servidão sob o báculo dos grandes tubarões das
altas finanças, esses que, com olhar esbugalhado e concupiscente,
vêem na cultura e no trabalho das musas algo assim como graciosas
vestais, devotadas e sinceras, mas destinadas às vitrines da zona
vermelha de Amsterdã.
A profissão de
produtor cultural que, como a bela Afrodite, é recém surgida da
espuma, sorri quase em êxtase, ilusionada com tantas esperanças e
expectativas. Contudo, é bom sempre considerarmos que também este é
o tempo da modernidade líquida de Bauman, a era do vazio de
Lipovetsky, a dos polsters geist e
o desmoronamento do walfare state.
Este nosso tempo, viu Sun-Tzu ser ressuscitado para dirigir empresas
como se fossem exércitos, e pode presenciar sem assombro que vestais
e garotas de programa se misturem num night
clube de Amsterdã, São Paulo ou Buenos Aires, para beber juntas um
daikiri ou uma vodca aditivada.
O sol brilha mais
forte neste fim da Era de Peixes —o buraco na camada de ozônio que
o diga!—, por isso é bom não nos iludirmos durante o via crucis
que nos espera para enfrentar o longo asfalto. Durante a incerta
travessia pelo deserto da pós-modernidade, melhor será olharmos as
nuvens à procura de água, e desconfiar sempre do sedutor brilho nas
dunas que poderia nos enceguecer.
O grande paradoxo
persiste. O enigma da esfinge dar-se-á entre o mundo da abundância
sem tempo e o do tempo sem nada a nos oferecer. A grande luta
continua sendo entre o ser e a nada, não entre o ter e a nada. Só
assim transcenderemos a escravidão ao tempo, para que a abundância
e o tempo sejam iguais e justos para todos, quando poderemos
multiplicar —isto é, repartir e usufruir, sem pressa— o tempo,
os pães e os peixes.
Dario
Garcia
Acadêmico Unipampa
Publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 26/03/2014
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