sexta-feira, 4 de abril de 2014

A ARTE, O TEMPO E O PRODUTOR CULTURAL

Benedetto Croce


Com data de 1º de janeiro de 1913 Benedetto Croce assina um manuscrito que enviaria por correio à universidade de Houston, Texas, contendo o seu Breviário sobre estética. Completavam o volume quatro lições sobre o tema. Na primeira delas, sob o título de “O que é arte?”, afirma o autor italiano que a resposta para tal pergunta poderia ser dada em forma de piada, já que, segundo ele, “a arte é aquilo que todos sabem o que é”, pois considera que se não tivéssemos alguma informação a respeito, tampouco a pergunta poderia ser feita (CROCE, 1938).

Um livro que começa desse modo, creio eu, promete-nos ser como um diálogo entre amigos, caloroso, vivificante e de grande proveito. Há nele esse ar de conhecimento humanista e otimismo esperançoso e romântico, tão em voga entre os escritores europeus de seu tempo, quando o mundo ainda conservava certa saúde mental e alguma decência nos costumes.

O fascismo e as duas Guerras Mundiais mudariam esse ambiente burguês de cultura afrancesada e tudo começaria a desmoronar aos poucos. Em tal cenário, também as artes se ressentiriam, cedendo o espaço a movimentos da contracultura ou experimentais, como o cubismo (1912), o dadaísmo (1916), o surrealismo e a música dodecafônica (1921).

O novo século XX, da modernidade risonha, que vira surgir Charles Chaplin com seus filmes de profundo humanismo e humor reflexivo, que acreditava (ela, a modernidade, não Charlot) na ortodoxia positivista de uma civilização industrializada em constante progresso, e de capitalismo em expansão, que o próprio Chaplin retrataria com grande agudeza e hilaridade em “Tempos modernos” (1936), daria passo em breve a uma humanidade estressada, neurótica e individualista.

Reflexão oportuna a de Ernst Cassirer (2005), quem nos diz que a arte é uma intensificação da realidade, enquanto que a linguagem e a ciência são uma abreviação da mesma. Nesse sentido, a “intensificação” da realidade que hoje nos acolhe pode dar-se numa vertigem psicodélica de cores e formas abstratas ou sons repetitivos e com efeito hipnótico: as primeiras como se fossem frutos de uma psicografia, e estes na forma de um produto enlatado, maquiado, equalizado e acrescido de efeitos mnemotécnicos e insuflados com uma grande dose de narcisismo, explícito ou subliminal.

O nosso tempo também poderia ser descrito como uma metáfora do mito bíblico da torre de Babel: as línguas nele se confundem, as culturas se misturam, os povos migram ou fogem da seca, da fome, do desemprego ou das guerras. Mas, outrossim, a globalização nos permite comer numa tigela chinesa um sushi japonês ou uns capeletti da Sardenha, bebendo um vinho chileno ou uma cerveja dinamarquesa, enquanto paqueramos um tablet recém comprado num shopping center ou na loja da esquina.

A internet nos apresenta todos os temas da cultura do mundo, em todas as línguas, ainda que persista um dos grandes paradoxos desta contemporaneidade: a mecanização, que nos prometia economizar tempo, veio com a sua data de validade vencida, ou lemos mal o manual: o relógio parece-nos andar muito depressa, e “ele”, o tempo, enquanto enigma metafísico, figura da linguagem, axioma einsteniano ou kuan do zen budismo, se relativiza, negativamente, encurtando-se.

Fazemos tudo às pressas, e ainda assim, a fruição da vida nos deixa com o apetite a meio resolver e, pior ainda, quanto mais pressa temos, nossa existência mais fugaz nos parece. Como um polster geist incorpóreo, o tempo continua a debochar de nós e de toda a nossa cultura científica e tecnológica, na qual parecemos estar cada dia mais atrapados, como num beco sem saída.

Há maior necessidade de informação e se nos exige uma mais completa ou específica formação profissional, a procura de um emprego melhor, ou simplesmente de um emprego qualquer que nos pague o pão e o teto. As pessoas viraram escravos dessa agoniada pressa mecânica e psicológica, e o destino da maioria se resumirá apenas a envelhecer encalhados no trânsito poluído das grandes metrópoles, no instante mais inoportuno, morrendo vítimas de estresse crônico, e crendo ter visto, ou anelando ter visto tudo e muito mais, numa bulimia de experiências e sensações que jamais foram plenamente compreendidas e satisfeitas.

Entre somas e restas, o que nos justifica e estimula, como futuros produtores culturais, é a terra prometida de uma demanda in crescendo, a incubar-se na sociedade, e que nos veria surgir ao cenário profissional como Hermes, o dos pés leves, arauto dos deuses, impelidos por promessas sedutoras, que tomara não nos reservem a sorte sofrida pelos argonautas comandados por Ulisses, nos mares tumultuosos dos quais as sereias talvez já foram expulsadas, ou cumprem humilhante servidão sob o báculo dos grandes tubarões das altas finanças, esses que, com olhar esbugalhado e concupiscente, vêem na cultura e no trabalho das musas algo assim como graciosas vestais, devotadas e sinceras, mas destinadas às vitrines da zona vermelha de Amsterdã.

A profissão de produtor cultural que, como a bela Afrodite, é recém surgida da espuma, sorri quase em êxtase, ilusionada com tantas esperanças e expectativas. Contudo, é bom sempre considerarmos que também este é o tempo da modernidade líquida de Bauman, a era do vazio de Lipovetsky, a dos polsters geist e o desmoronamento do walfare state. Este nosso tempo, viu Sun-Tzu ser ressuscitado para dirigir empresas como se fossem exércitos, e pode presenciar sem assombro que vestais e garotas de programa se misturem num night clube de Amsterdã, São Paulo ou Buenos Aires, para beber juntas um daikiri ou uma vodca aditivada.

O sol brilha mais forte neste fim da Era de Peixes —o buraco na camada de ozônio que o diga!—, por isso é bom não nos iludirmos durante o via crucis que nos espera para enfrentar o longo asfalto. Durante a incerta travessia pelo deserto da pós-modernidade, melhor será olharmos as nuvens à procura de água, e desconfiar sempre do sedutor brilho nas dunas que poderia nos enceguecer.

O grande paradoxo persiste. O enigma da esfinge dar-se-á entre o mundo da abundância sem tempo e o do tempo sem nada a nos oferecer. A grande luta continua sendo entre o ser e a nada, não entre o ter e a nada. Só assim transcenderemos a escravidão ao tempo, para que a abundância e o tempo sejam iguais e justos para todos, quando poderemos multiplicar —isto é, repartir e usufruir, sem pressa— o tempo, os pães e os peixes.
Dario Garcia
Acadêmico Unipampa 

Publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 26/03/2014

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