Não há nada para comemorar, mas tudo para relembrar.
Isto deve, ao menos, ser feito em respeito aos que foram expulsos do
País, torturados ou mortos pela repressão. Aos que resistiram em
nome da liberdade de todos nós, até mesmo daqueles que concordavam
(e concordam) com os desmandos que se praticava.
O golpe de 64, que condenou o Brasil a uma longa noite
de 21 anos, também impediu o surgimento de novas lideranças
políticas que poderiam ter sido cultivadas nesse longo período de
imposição de silêncios e de vozes apenas murmuradas. Até hoje o
Brasil não se recuperou do atraso social e político imposto pela
ditadura. As manifestações culturais, se não tivessem a chancela
dos poderosos, através de seus sensores, eram simplesmente
proibidas. Temos inúmeros exemplos em todos os setores das artes e
da literatura.
De minhas memórias pessoais, tenho lembrança de alguns
fatos que marcaram, de forma indelével, minha trajetória inicial
aqui na cidade grande. Um deles é o de uma livraria sendo violada
(Cabe o termo, eu acho!) em plena luz do dia. Em uma das vias mais
centrais da Capital (Andrade Neves), alguns representantes dos donos
da verdade jogavam pela janela para o leito da rua as obras que, na
sua tacanhez, consideravam perigosas para os cidadãos comuns. Outro
fato foi a invasão de uma casa modesta, vizinha a minha no bairro
Glória, pelos brigadianos do antigo GOE. Naquela época, eles
portavam capacetes vermelhos e espalhavam terror quando eram chamados
para conter manifestações estudantis que ocorriam, geralmente, no
campus central da UFRGS. Lembro, também, de uma insinuação
autoritária emitida por um representante de uma multinacional do
ramo de máquinas quando exercia um cargo público no qual iria, mais
tarde, aposentar-me. Ao "flagrar-me" tecendo uma crítica à
ação das malfadadas multinacionais que pululavam pelo País, ele me
encarou de maneira autoritária, dizendo-me: "Cuidado que podes
perder o teu emprego"...Isso que ele não era o "guarda da
esquina" e não vestia nenhum tipo de farda!
Na noite de primeiro de abril de 1964, ainda em
Jaguarão, eu estava entrando em aula quando fui alertado por um
colega de trabalho que nosso chefe (Agrônomo Regional de Jaguarão
naquela época, hoje falecido) havia sido preso e encontrava-se
detido na Enfermaria, transformada em local de interrogatórios de
"subversivos", sob a coordenação do temido DOPS (famoso
por seus métodos de tortura). A acusação era a de que ele se
relacionava com um orizicultor que seria comunista. Aquela pessoa,
realmente, costumava visitar-nos no escritório e dele, muitas vezes,
ouvi afirmativas nacionalistas em longas análises políticas e
econômicas que costumava fazer entre a fumaceira de um cigarro e
outro. Após um rápido raciocínio e, por medida preventiva, saí do
colégio e corri ao meu local de trabalho em busca de algum
livro que pudesse despertar a ira dos inquisidores de plantão na
cidade. De fato, entre os meus preferidos que lá estavam,
encontrava-se uma importante obra de um conhecido autor nacionalista
- Gondin da Fonseca - que alertava para os interesses econômicos
estrangeiros que rondavam nosso País. Hoje, aquele livro, já
esgotado, não se encontra na minha modesta biblioteca, infelizmente.
Não lembro o que fiz dele. Certamente não teve o mesmo fim que dei
a algumas revistas chinesas em Esperanto (El Popola Cinio) cuja
assinatura vinha através da Itália por motivos óbvios.
O
golpe de 64, portanto, encontrou-me, no vigor dos meus dezenove anos,
atuando em várias entidades em Jaguarão: Círculo Operário,
Aeroclube, Interact, entre outras. Na área estudantil, se não me
falha a memória, ocupava o cargo de Secretário do Ensino Comercial
na União Jaguarense dos Estudantes Secundaristas na qual, mais
tarde, ocuparia a presidência.
Em Porto Alegre, aonde cheguei em dezembro de 1965, a minha atividade cultural foi dirigida ao cineclubismo, no qual fiz parte das Diretorias do Cineclube Pro Deo, da Federação Gaúcha e do Conselho Nacional. Naqueles anos, tínhamos dificuldade em exibir alguns filmes considerados "subversivos". Às vezes, as sessões começavam sem que se soubesse se seriam interrompidas ou não.
Inicialmente,
na minha vida profissional era comum a realização de trabalhos à
noite. Como a sede da Sudesul estava localizada na Rua da Praia
muitas vezes éramos envolvidos em alguma correria com a Polícia
querendo experimentar a resistência da madeira contra a carne
humana.
O movimento liderado por militares contou com o apoio de
lideranças políticas civis reconhecidas por suas posições
direitistas. A Igreja e a mídia foram, também, esteio importante
para os golpistas. A imprensa, naquele período, nem mencionava -
como hoje faz - a palavra "golpe" quanto mais insinuar
qualquer coisa que desabonasse os generais de então. Acrescente-se a
isso o apoio institucional dos Estados Unidos que, aliás, tem larga
experiência em golpes, graças a sua participação nos que
ocorreram não só na América Latina como em tantos outros
países.
Mesmo depois do sacrifício de pessoas que perderam suas próprias vidas para que o País fosse melhor para todos, as reformas de base tão necessárias não se concretizaram. Só elas poderão conduzir o Brasil ao completo desenvolvimento. São condição indispensável para atingirmos a igualdade própria de um País plenamente democrático. Em alguns aspectos, talvez estejamos na Idade Média. Na distribuição de renda, por exemplo, ainda somos medievais: um dia do maior salário (Ministro do STF) equivale a 60 dias do menor salário (operário sem qualificação). Isto sem apontar outras vantagens que estes não têm. Não há como justificar tamanha desigualdade.
Se somos um país pobre, todos devem pagar por isso; se somos um país rico, todos temos direito de beneficiarmo-nos dessa riqueza. Sem diferenças amazônicas.
Wenceslau
Gonçalves
wenceslaugoncalves.blogspot.com.br
Publicado na coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 09/04/2014
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