segunda-feira, 13 de maio de 2013

13 de maio: A única revolução social do Brasil


Mário Maestri (*)

Neste 13 de maio, cumpre-se sem glória mais um natalício do fim da escravatura no Brasil, uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão. Dos 505 anos de história brasileira, mais de 350 passaram-se sob o látego negreiro. Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo acontecimento de passado nacional, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido.

A Abolição já foi data magna, festivamente relembrada. Nos últimos anos, tem sido fortemente questionada e objeto de verdadeira conspiração de silêncio. Paradoxalmente, a operação recebe o apoio do movimento negro brasileiro que, ao contrário, deveria desdobrar-se na celebração do 13 de Maio e na discussão de seu significado histórico, destruindo as interpretações apologéticas sobre ele.

O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi um dos grandes mitos nacionais. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição motivara lutas fratricidas. A guerra de Secessão causou quinhentas mil vítimas nos USA. No Haiti, em 1804, a destruição da ordem negreira exigiu a mais violentas guerra social das Américas.

No Brasil, a transição teria-se efetuado sem violências devido a instituições sensíveis ao progresso dos tempos, a líderes esclarecidos e à humanitária alma popular. Neste cenário de paz e concórdia, brilharia a figura de Isabel - a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros e despreocupada com a sorte do trono, assinou com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro.

Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras intransponíveis. As desigualdades existentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira, enraizada em uma concórdia estrutural entre ricos e pobres, brancos e negros. Ao menos, era o que se dizia.

Pátria incruenta
Acontecimentos pátrios de impar importância, a Independência, a República e a abolição teriam como denominador comum o caráter essencialmente pacífico da civilização brasileira. Apresentava-se igualmente a essência patriarcal da ordem escravista como corolário da natureza magnânima do brasileiro, que quebrantava qualquer confronto de raça, credo e classe.

Com a queda da ditadura militar, em 1985, a crescente organização popular e o surgimento de entidades negras combativas criaram as condições para desnudar a triste realidade subjacente ao discurso da democracia racial e da fraternidade brasileiras. As narrativas laudatórias sobre a abolição, sobre a escravidão e sobre o caráter democrático nacional trincavam-se contra a triste realidade contemporânea.

Em fins dos anos setenta, diante dos olhos mais míopes, desnudava-se situação onde o povo negro constituía a parcela mais sofrida de uma população crescentemente explorada. Revelava-se mesmo para os que se negavam a ver sociedade singularmente violenta onde a pele escura dificultava a conquista do trabalho e facilitava o acesso à prisão, se não ao necrotério.

Desde os anos sessenta, as descrições fantasiosas sobre o passado do Brasil foram refutadas por cientistas sociais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, etc. que empreenderam análises mais objetivas sobretudo dos séculos 19 e 20. Porém, em geral, esses autores negaram significado histórico do 13 de Maio. Apontavam a inusitada violência do escravismo brasileiro mas definiam a sua superação como um "negócio de brancos", onde os cativos, principais interessados, não teriam tido papel significativo ou ganhos substanciais.

Em fins dos anos setenta, o movimento negro retomou acriticamente essa tese, com o objetivo de melhor denunciar a situação da população afro-descendente. Para desqualificar a Abolição, ressaltou-se que se efetuara sem indenização pecuniária ou fundiária. Que o movimento abolicionista buscava, libertando os cativos, criar mão-de-obra barata. Que após a Abolição, as condições de existência das massas negras teriam talvez piorado, tese defendida, por Gilberto Freyre, sobretudo em Sobrados e mucambos, de 1936.

Para melhor criticar os mitos da emancipação do povo negro em 1888 e da ação magnânima da Regente Imperial, o movimento negro propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro como dia nacional da consciência negra no Brasil. Naquela data, em 1695, morria Zumbi, o último chefe da confederação dos quilombos de Palmares.

Encobrindo o passado
Apesar de bem-intencionadas, essas leituras consolidaram as interpretações do 13 de Maio dos ideólogos das classes proprietárias, que procuravam escamotear o sentido de sucessos nascidos do esforço das massas escravizadas aliadas aos setores abolicionistas radicalizados. Assentavam assim a última pedra na construção do esquecimento do mais importante acontecimento histórico brasileiro - a revolução abolicionista de 1887-8.

O movimento negro organizado esquecia que celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação social do povo negro em 1888 e de Isabel como promotora da emancipação. Ignoram que comemorar o fim da escravidão significa recuperar a importância daquela superação, através de frente política pluri-classistas e do protagonismo dos cativos no passado.

Em forma alienada e imperfeita, as comunidades negras sempre intuíram a importância histórica de 1888. Apenas nos últimos anos essa consciência diluiu-se devido ao proselitismo anti-Abolição, verdadeira invenção da tradição que resulta em grave perda da memória histórica pelas classes trabalhadoras e oprimidas, em geral, e afro-descendentes, em particular.

Foi o profundo impacto da Libertação na consciência e na vida dos cativos e libertos que levou o povo negro a rememorar, com tanto carinho, por um século, o 13 de Maio, e festejar, imerecidamente, com devoção, Isabel, herdeira da casa de Bragança, grande responsável pela manutenção do cativeiro quase até o século 20.

Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, apesar de ter vivido como homem livre na profunda miséria, afirmava comovido, semanas antes de morrer, que após a "Libertação", o povo negro vivera "na glória". Maria Benedita da Rocha, uma outra ex-cativa, também centenária, referiu-se, arrebatada ao anúncio do fim do cativeiro na sua fazenda. Através do Brasil, nas cidades e campos, em 13 de maio de 1888, os tambores e atabaques ressoaram poderosos ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados.

O dia da libertação
A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão da Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular, determinada pela ideologia dominante, de acontecimento de profundo sentido histórico para os cativos e para a nacionalidade brasileira. Ou seja, o resultado de operação de diluição da memória do protagonismo dos trabalhadores escravizados naqueles sucessos.

Não há sentido em antepor Palmares a 1888. Por mais heróica que tenha sido, a epopéia palmarina jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da instituição servil como um todo. Palmares resistiu por quase um século, determinou a história do Brasil, mas foi derrotado. A revolução abolicionista foi vitoriosa e pôs fim ao escravismo, ainda que tardiamente.

Desconhecer o sentido revolucionário da Abolição é olvidar a essência escravista de dois terços de passado brasileiro e o caráter singular da gênese do Brasil contemporâneo, através da destruição do escravismo. Tal desconhecimento ignora a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos o passado brasileiro - escravizadores contra escravizados.

Nos anos cinqüenta, autores como Clóvis Moura e Benjamin Péret produziram importantes leituras sobre o agir dos trabalhadores escravizados no Brasil. Nos anos sessenta, Emília Viotti da Costa, Stanley Stein, etc. avançaram significativamente o conhecimento essencial da escravidão. Nas duas décadas seguintes, foram produzidos numerosos trabalhos sobre a sociedade, economia e as formassui-generis de resistência do cativo, destacando-se entre eles a apresentação do escravismo colonial como modo-de-produção historicamente novo, por Jacob Gorender, em O escravismo colonial.

Nesses anos, estudos como o clássico Os últimos anos da escravidão no Brasil, de Robert Conrad, apresentaram a Abolição, em seu tempo conjuntural, como o resultado da insurreição incruenta dos cativos cafeicultores que, nos últimos meses do cativeiro, abandonaram maciçamente as fazendas, reivindicando relações contratuais de trabalho. Tais estudos desvelaram parcialmente a extrema tensão política e social sob a qual o movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em 1888, em estreita ligação com a massa escravizada, principal protagonista dessas jornadas.

Instituição terminal
Em 13 de maio de 1888, a herdeira imperial nada mais fez do que, após o projeto abolicionista ter sido aprovado no parlamento, sancionar a Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica devido a sua desorganização pela fuga dos cativos. Durante todo o Primeiro e o Segundo Reinados, os Braganças haviam defendido com unhas e dentes a escravidão, conscientes da aliança que os unia umbilicalmente aos escravistas.

Nos últimos meses da escravidão, os mais renitentes negreiros reconheciam já a inevitabilidade do fim da instituição. Defendendo até o último momento o cativeiro, pretendiam apenas criar as melhores condições para reivindicar indenização pela propriedade libertada. Foi devido a essa pretensão que o ministro republicano Rui Barbosa ordenou a queima dos registros de posse de cativos pois, sem prova legal, não havia possibilidade de indenização.

Foi igualmente a ação estrutural das massas escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. Sobretudo a rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento tecnológico da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção historicamente superiores.

Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial que, por mais de três séculos, ordenara a sociedade no Brasil. Negar esta realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, da população negra, é compreender a história com visões simplistas e, sobretudo, não históricas. Os limites da Abolição eram objetivos. Nos últimos anos da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que lutava sobretudo pelos direitos cidadãos mínimos. Foi a reivindicação da liberdade civil que uniu a luta dos cativos rurais à dos cativos urbanos, então pouco representativos.

Apenas a liberdade
Não procede a proposta que a abolição não teve conteúdo porque os cativos não foram indenizados. A estrutura latifundiária da produção, a pouca difusão de hortas servis e a liberdade civil como reivindicação central já dificultavam movimento pela distribuição de terras, que exigiria a união de cativos, caboclos, posseiros, colonos sem terra, etc., praticamente impossível de ser então concretizada, devido sobretudo ao baixo nível de consciência e organização e à elevada heterogeneidade e dispersão geográfica das classes trabalhadoras rurais. Porém, tal medida foi defendida por setores do movimento abolicionista.

Na limitação das conquistas econômicas obtidas quando da abolição pesou a verdadeira contra-revolução republicana, oligárquica e federalista de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao movimento abolicionista como projeto reformista nacional. Os limites históricos da Abolição não devem minimizar a importância da conquista dos direitos políticos e civis mínimos por setecentos mil "escravos" e "ventre-livres". Com o 13 de Maio, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados, iniciando-se a história da classe operária brasileira como a compreendemos hoje.

Nos anos 90, a derrota histórica do mundo trabalho e a euforia neoliberal que apenas hoje perde ímpeto determinaram os destinos gerais da historiografia. No Brasil como alhures, em tempos de Nova História, os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bon ton historiográfico passaram a recomendar estudos monográficos, intimistas, biográficos e exóticos, tranqüilizadores das consciências e pacificadores dos espíritos. De ciência que procurava compreender e libertar, a história evoluiu à arte de entreter e apaziguar.

Nesse contexto, decaiu o interesse e os incentivos, diretos e indiretos, para a pesquisa sobre a história das classes subalternizadas e para os estudos analíticos sobre o passado. Apequenaram-se os estudos sobre as classes trabalhadoras urbanas, o movimento camponês, os fenômenos essenciais da sociedade humana. Diminuíram as pesquisas sobre a escravidão, que foram dominadas novamente pelas teses da escravidão benigna e consensual, defendidas com singular inteligência e cabotinismo por Gilberto Freyre a partir dos anos 1930.

A história é processo objetivo e complexo, apenas em geral ascendente, onde as conquistas sociais de ontem, parciais e contraditórias, possibilitam conquistas mais substanciais no presente, como podem, igualmente, dar lugar a recuos históricos, que ensejam, necessariamente, o obscurecimento da compreensão do presente e do passado.

A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas moderno, promovido sobretudo pelos trabalhadores escravizados, em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios e alguns poucos proprietários. Até agora, constituiu a única revolução social vitoriosa do Brasil. Resgatando seu sentido e desvelando sua história, prosseguiremos mais facilmente no sentido apontado pelos trabalhadores escravizados que ousaram abandonar as senzalas para pôr fim à ordem negreira, no não tão longínquo ano de 1888.

(*) Mário Maestri, 56, é professor do PPGH da UPF. É autor, entre outros, de Depoimentos de escravos brasileiros. [São Paulo: Ícone, 1988]. E-mail: maestri@via-rs.net


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