Mário Maestri (*)
Neste 13 de maio,
cumpre-se sem glória mais um natalício do fim da escravatura no Brasil, uma das
primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão. Dos
505 anos de história brasileira, mais de 350 passaram-se sob o látego negreiro.
Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo acontecimento
de passado nacional, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez,
semi-esquecido.
A Abolição já foi data magna, festivamente relembrada.
Nos últimos anos, tem sido fortemente questionada e objeto de verdadeira
conspiração de silêncio. Paradoxalmente, a operação recebe o apoio do movimento
negro brasileiro que, ao contrário, deveria desdobrar-se na celebração do 13 de
Maio e na discussão de seu significado histórico, destruindo as interpretações
apologéticas sobre ele.
O caráter cordial, transigente e pacífico do
brasileiro já foi um dos grandes mitos nacionais. A abolição da escravatura foi
apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da
instituição motivara lutas fratricidas. A guerra de Secessão causou quinhentas
mil vítimas nos USA. No Haiti, em 1804, a destruição da ordem negreira exigiu a
mais violentas guerra social das Américas.
No Brasil, a transição teria-se efetuado sem
violências devido a instituições sensíveis ao progresso dos tempos, a líderes
esclarecidos e à humanitária alma popular. Neste cenário de paz e concórdia,
brilharia a figura de Isabel - a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos
negros e despreocupada com a sorte do trono, assinou com pena de ouro o diploma
que pôs fim ao cativeiro.
Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de
sociedade fraterna e desprovida de barreiras intransponíveis. As desigualdades
existentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira,
enraizada em uma concórdia estrutural entre ricos e pobres, brancos e negros.
Ao menos, era o que se dizia.
Pátria incruenta
Acontecimentos pátrios de impar importância, a
Independência, a República e a abolição teriam como denominador comum o caráter
essencialmente pacífico da civilização brasileira. Apresentava-se igualmente a
essência patriarcal da ordem escravista como corolário da natureza magnânima do
brasileiro, que quebrantava qualquer confronto de raça, credo e classe.
Com a queda da ditadura militar, em 1985, a crescente
organização popular e o surgimento de entidades negras combativas criaram as
condições para desnudar a triste realidade subjacente ao discurso da democracia
racial e da fraternidade brasileiras. As narrativas laudatórias sobre a
abolição, sobre a escravidão e sobre o caráter democrático nacional
trincavam-se contra a triste realidade contemporânea.
Em fins dos anos setenta, diante dos olhos mais
míopes, desnudava-se situação onde o povo negro constituía a parcela mais
sofrida de uma população crescentemente explorada. Revelava-se mesmo para os
que se negavam a ver sociedade singularmente violenta onde a pele escura
dificultava a conquista do trabalho e facilitava o acesso à prisão, se não ao
necrotério.
Desde os anos sessenta, as descrições fantasiosas
sobre o passado do Brasil foram refutadas por cientistas sociais como Florestan
Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, etc. que empreenderam
análises mais objetivas sobretudo dos séculos 19 e 20. Porém, em geral, esses
autores negaram significado histórico do 13 de Maio. Apontavam a inusitada
violência do escravismo brasileiro mas definiam a sua superação como um
"negócio de brancos", onde os cativos, principais interessados, não
teriam tido papel significativo ou ganhos substanciais.
Em fins dos anos setenta, o movimento negro retomou
acriticamente essa tese, com o objetivo de melhor denunciar a situação da
população afro-descendente. Para desqualificar a Abolição, ressaltou-se que se
efetuara sem indenização pecuniária ou fundiária. Que o movimento abolicionista
buscava, libertando os cativos, criar mão-de-obra barata. Que após a Abolição,
as condições de existência das massas negras teriam talvez piorado, tese
defendida, por Gilberto Freyre, sobretudo em Sobrados e mucambos,
de 1936.
Para melhor criticar os mitos da emancipação do povo
negro em 1888 e da ação magnânima da Regente Imperial, o movimento negro propôs
a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro como dia nacional
da consciência negra no Brasil. Naquela data, em 1695, morria Zumbi, o último
chefe da confederação dos quilombos de Palmares.
Encobrindo o passado
Apesar de bem-intencionadas, essas leituras
consolidaram as interpretações do 13 de Maio dos ideólogos das classes
proprietárias, que procuravam escamotear o sentido de sucessos nascidos do
esforço das massas escravizadas aliadas aos setores abolicionistas
radicalizados. Assentavam assim a última pedra na construção do esquecimento do
mais importante acontecimento histórico brasileiro - a revolução abolicionista
de 1887-8.
O movimento negro organizado esquecia que celebrar a
Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação social do povo negro
em 1888 e de Isabel como promotora da emancipação. Ignoram que comemorar o fim
da escravidão significa recuperar a importância daquela superação, através de
frente política pluri-classistas e do protagonismo dos cativos no passado.
Em forma alienada e imperfeita, as comunidades negras
sempre intuíram a importância histórica de 1888. Apenas nos últimos anos essa
consciência diluiu-se devido ao proselitismo anti-Abolição, verdadeira invenção
da tradição que resulta em grave perda da memória histórica pelas classes
trabalhadoras e oprimidas, em geral, e afro-descendentes, em particular.
Foi o profundo impacto da Libertação na consciência e
na vida dos cativos e libertos que levou o povo negro a rememorar, com tanto
carinho, por um século, o 13 de Maio, e festejar, imerecidamente, com devoção,
Isabel, herdeira da casa de Bragança, grande responsável pela manutenção do
cativeiro quase até o século 20.
Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos,
ex-cativo centenário, apesar de ter vivido como homem livre na profunda
miséria, afirmava comovido, semanas antes de morrer, que após a
"Libertação", o povo negro vivera "na glória". Maria
Benedita da Rocha, uma outra ex-cativa, também centenária, referiu-se,
arrebatada ao anúncio do fim do cativeiro na sua fazenda. Através do Brasil,
nas cidades e campos, em 13 de maio de 1888, os tambores e atabaques ressoaram
poderosos ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados.
O dia da libertação
A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão
da Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular, determinada
pela ideologia dominante, de acontecimento de profundo sentido histórico para
os cativos e para a nacionalidade brasileira. Ou seja, o resultado de operação
de diluição da memória do protagonismo dos trabalhadores escravizados naqueles
sucessos.
Não há sentido em antepor Palmares a 1888. Por mais
heróica que tenha sido, a epopéia palmarina jamais propôs, e historicamente não
poderia ter proposto, a destruição da instituição servil como um todo. Palmares
resistiu por quase um século, determinou a história do Brasil, mas foi
derrotado. A revolução abolicionista foi vitoriosa e pôs fim ao escravismo,
ainda que tardiamente.
Desconhecer o sentido revolucionário da Abolição é
olvidar a essência escravista de dois terços de passado brasileiro e o caráter
singular da gênese do Brasil contemporâneo, através da destruição do
escravismo. Tal desconhecimento ignora a contradição essencial que regeu por
mais de trezentos anos o passado brasileiro - escravizadores contra
escravizados.
Nos anos cinqüenta, autores como Clóvis Moura e
Benjamin Péret produziram importantes leituras sobre o agir dos trabalhadores
escravizados no Brasil. Nos anos sessenta, Emília Viotti da Costa, Stanley
Stein, etc. avançaram significativamente o conhecimento essencial da
escravidão. Nas duas décadas seguintes, foram produzidos numerosos trabalhos
sobre a sociedade, economia e as formassui-generis de resistência
do cativo, destacando-se entre eles a apresentação do escravismo colonial como
modo-de-produção historicamente novo, por Jacob Gorender, em O
escravismo colonial.
Nesses anos, estudos como o clássico Os
últimos anos da escravidão no Brasil, de Robert Conrad, apresentaram a
Abolição, em seu tempo conjuntural, como o resultado da insurreição incruenta
dos cativos cafeicultores que, nos últimos meses do cativeiro, abandonaram
maciçamente as fazendas, reivindicando relações contratuais de trabalho. Tais
estudos desvelaram parcialmente a extrema tensão política e social sob a qual o
movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em 1888, em estreita
ligação com a massa escravizada, principal protagonista dessas jornadas.
Instituição terminal
Em 13 de maio de 1888, a herdeira imperial nada mais
fez do que, após o projeto abolicionista ter sido aprovado no parlamento,
sancionar a Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica
devido a sua desorganização pela fuga dos cativos. Durante todo o Primeiro e o
Segundo Reinados, os Braganças haviam defendido com unhas e dentes a
escravidão, conscientes da aliança que os unia umbilicalmente aos escravistas.
Nos últimos meses da escravidão, os mais renitentes
negreiros reconheciam já a inevitabilidade do fim da instituição. Defendendo
até o último momento o cativeiro, pretendiam apenas criar as melhores condições
para reivindicar indenização pela propriedade libertada. Foi devido a essa
pretensão que o ministro republicano Rui Barbosa ordenou a queima dos registros
de posse de cativos pois, sem prova legal, não havia possibilidade de
indenização.
Foi igualmente a ação estrutural das massas
escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições
que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. Sobretudo a rejeição
permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao
desenvolvimento tecnológico da produção escravista, determinando altos gastos
de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção
historicamente superiores.
Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de
produção escravista colonial que, por mais de três séculos, ordenara a
sociedade no Brasil. Negar esta realidade devido às condições econômicas,
passadas ou atuais, da população negra, é compreender a história com visões
simplistas e, sobretudo, não históricas. Os limites da Abolição eram objetivos.
Nos últimos anos da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que
lutava sobretudo pelos direitos cidadãos mínimos. Foi a reivindicação da liberdade
civil que uniu a luta dos cativos rurais à dos cativos urbanos, então pouco
representativos.
Apenas a liberdade
Não procede a proposta que a abolição não teve
conteúdo porque os cativos não foram indenizados. A estrutura latifundiária da
produção, a pouca difusão de hortas servis e a liberdade civil como
reivindicação central já dificultavam movimento pela distribuição de terras,
que exigiria a união de cativos, caboclos, posseiros, colonos sem terra, etc.,
praticamente impossível de ser então concretizada, devido sobretudo ao baixo
nível de consciência e organização e à elevada heterogeneidade e dispersão
geográfica das classes trabalhadoras rurais. Porém, tal medida foi defendida
por setores do movimento abolicionista.
Na limitação das conquistas econômicas obtidas quando
da abolição pesou a verdadeira contra-revolução republicana, oligárquica e
federalista de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao movimento abolicionista
como projeto reformista nacional. Os limites históricos da Abolição não devem minimizar
a importância da conquista dos direitos políticos e civis mínimos por
setecentos mil "escravos" e "ventre-livres". Com o 13 de
Maio, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados,
iniciando-se a história da classe operária brasileira como a compreendemos
hoje.
Nos anos 90, a derrota histórica do mundo trabalho e a
euforia neoliberal que apenas hoje perde ímpeto determinaram os destinos gerais
da historiografia. No Brasil como alhures, em tempos de Nova História,
os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bon ton historiográfico
passaram a recomendar estudos monográficos, intimistas, biográficos e exóticos,
tranqüilizadores das consciências e pacificadores dos espíritos. De ciência que
procurava compreender e libertar, a história evoluiu à arte de entreter e
apaziguar.
Nesse contexto, decaiu o interesse e os incentivos,
diretos e indiretos, para a pesquisa sobre a história das classes
subalternizadas e para os estudos analíticos sobre o passado. Apequenaram-se os
estudos sobre as classes trabalhadoras urbanas, o movimento camponês, os
fenômenos essenciais da sociedade humana. Diminuíram as pesquisas sobre a
escravidão, que foram dominadas novamente pelas teses da escravidão benigna e
consensual, defendidas com singular inteligência e cabotinismo por Gilberto
Freyre a partir dos anos 1930.
A história é processo objetivo e complexo, apenas em
geral ascendente, onde as conquistas sociais de ontem, parciais e
contraditórias, possibilitam conquistas mais substanciais no presente, como
podem, igualmente, dar lugar a recuos históricos, que ensejam, necessariamente,
o obscurecimento da compreensão do presente e do passado.
A revolução abolicionista foi o primeiro grande
movimento de massas moderno, promovido sobretudo pelos trabalhadores
escravizados, em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios e
alguns poucos proprietários. Até agora, constituiu a única revolução social
vitoriosa do Brasil. Resgatando seu sentido e desvelando sua história,
prosseguiremos mais facilmente no sentido apontado pelos trabalhadores
escravizados que ousaram abandonar as senzalas para pôr fim à ordem negreira,
no não tão longínquo ano de 1888.
(*) Mário Maestri, 56, é professor do
PPGH da UPF. É autor, entre outros, de Depoimentos de escravos
brasileiros. [São Paulo: Ícone,
1988]. E-mail: maestri@via-rs.net
Fonte: http://www.lainsignia.org
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