Vaivém das fronteiras- diversidade além dos limites geopolíticos impostos |
Na concepção topográfica determinada pelas
cartografias da criação e fortalecimento dos Estados modernos
durante o século XIX, na invenção de territórios homogêneos que
se organizavam segundo exigências de aparelhos e estratégias
estatais, reconheciam-se as fronteiras em confins naturais,
constituindo-se por elementos de uma doutrina chamada geopolítica, o
que atribuía a marcos geográficos uma função determinante na
história política. No entanto, um rio, um deserto ou uma montanha
só podem ser considerados referências de divisão quando ainda não
tocados pelas sociedades. Se, em casos de expansão militarizada,
eles oferecem obstáculos notáveis, em tempos de paz um rio, por
exemplo, pode ser uma via de transporte, mobilidade das pessoas e
intercâmbio de mercadorias, ocasionando relações culturais, o que
pulveriza as clássicas soberanias e dilui as definições rígidas
da fronteira. Opera-se aí um modus vivendi que conforma um
espaço que contém influxos para além das nacionalidades,
resultando em dinâmicas sociais compartilhadas entre fronteiriços
de ambos países em contato.
Nas escolas situadas nas proximidades do limite
entre o Brasil e o Uruguai, tanto antes como agora, os falares
mesclados de português e espanhol evidenciam a interação existente
na fronteira. Sérgio da Costa Franco destaca, no livro Origens de
Jaguarão, o discurso de um inspetor de escola em 1907, quando
advertia as autoridades do seu país sobre dificuldades no ensino
causadas pelo contato com o brasileiro. Dramaticamente, como
funcionário público que zela por rígidas e definitivas identidades
nacionais, o tal inspetor uruguaio não percebia a riqueza da
diversidade cultural e fazia a crítica:
Nuestras
escuelas fronterizas, diseminadas en la extensa región donde domina
la lengua portuguesa y los hábitos y costumbres brasileños, y donde
nuestros compatriotas no saben que lo son – o parecen no saberlo –,
requieren, exigen, imponen una especial enseñanza para los niños
que las frecuentan. Esos niños son orientales sí, casi en su
totalidad, pero
abrasilerados!
Na contramão desse posicionamento está a
produção do poeta Fabián Severo, natural da fronteiriça cidade de
Artigas, Uruguai, que busca a poesia na alma e o que encontra é uma
linguagem original que dá uma tonicidade própria e libertária,
fora de qualquer padrão restritivo, como no poema intitulado
“Trinticuatro”:
Mi madre falava mui bien, yo
intendía.
Fabi andá
faser los deber, yo
fasía.
Fabi traseme
meio litro de leite,
yo trasía
Desí pra
doña Cora que amañá le pago,
yo disía
Deya iso gurí
i yo deiyava.
Mas mi maestra
no intendía. […]
Indiferentes ou hesitantes em sua consciência
de nação, os habitantes da fronteira criam a sua pátria particular
e heterogênea, como evidencia o poeta jaguarense Martim César ao
declarar o reconhecimento de histórias e culturas diferentes, mas
que se conjugam na mesma raiz:
Venho da mesma raiz
Profunda e antiga do pago
E essa estirpe que eu trago
Desde a ancestral matriz
Moldou a pátria que eu fiz
No vaivém das fronteiras
Em duas Américas lindeiras
No garrão do continente...
“Dois idiomas diferentes
Mas só uma gente campeira”!
Parece
também ser essa a identificação que Sergio Faraco encontra na
narrativa de Mario Arregui, como declarou em correspondência ao
autor uruguaio no período em que fazia a tradução para o português
de contos do seu amigo. Na carta, expõe diferenças entre seus
territórios, mas mais do que isso percebe aproximações que os
fazem conterrâneos da mesma “nação pampiana”: “O Uruguai e o
Rio Grande se parecem. O Rio Grande padece a influência deletéria
do imperialismo cultural do centro do país e é nessa medida que
teus contos recobram a índole do homem do campo – inclusive o
rio-grandense – e, exagerando, sua ‘nacionalidade’”. Essa é
a perspectiva que aponta o pensador Homi Bhabha ao perceber uma
cultura que se situa em um terceiro espaço, onde o lado de lá e o
lado de cá se encontram nas travessias, no alargamento das margens e
nos limites apagados, conformando um entre-lugar.
Entendida
nas suas referências simbólicas e por seu caráter cultural, esse
terceiro espaço transcende ao imaginário e coloca em evidência
outras percepções geográficas, onde as direções de fronteira
afora impõem revisões políticas, históricas, linguísticas e
identitárias para mostrar outras dimensões do seu significado, o
que dispersa centralismos, homogeneidades e únicas verdades.
Carlos Rizzon
Professor Letras Unipampa
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional do dia 30/01/2013
Um comentário:
Ao que me consta, já foi implantado um programa para ensino da língua portuguesa nas escolas fronteiriças do Uruguai, a fim de se combater o "portunhol" que se vinha disseminando entre a população "doble chapa".
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