Martim César Gonçalves
Há não mais de uma dezena de gerações atrás, o idioma
que se ouvia neste recanto do planeta era uma mescla de guarani, quíchua,
espanhol e português. Nesse então, as fronteiras ainda eram imprecisas; móveis;
demudavam-se conforme o resultado das batalhas e o interesse dos soberanos.
Estes, na distante Ibéria, pouco sabiam das gentes que habitavam estes campos
quase infindos. Os índios, que foram senhores destas planuras até a chegada do
branco conquistador, resistiram como puderam à invasão dos seus domínios. No
meio tempo dessa resistência vieram os jesuítas e, com eles, uma nova concepção
de vida em sociedade. Não era a visão nativa – natureza como Deus; mesmo assim,
alguns aceitaram aquele novo sistema. Absorveram parte do conhecimento do
europeu e, aos poucos, também eles foram mostrando a sua arte e alguns
vestígios da sua milenar cultura. Porém, essa utópica experiência de muito não
durou. Sucumbiu ao vaivém de interesses das cortes de além-mar. Inconcebíveis
desígnios para quem vivia da comunhão e do amor ao natural. Chegou outra vez a
guerra. Antes era a fúria sanguinária das Bandeiras que assolavam as reduções.
Agora eram os exércitos oficiais que as atacavam. Do fundo do tempo ouviu-se
uma voz: ‘Esta terra tem dono... esta terra tem dono’ – e era a voz de todo um
povo. Depois veio o extermínio.
Hoje restam algumas tribos, espalhadas por
reservas oprimidas; alguns poucos descendentes daqueles tapes missioneiros
quase mendigando nas margens das rodovias. Mais ao sul, nas Vacarias del Mar,
outras tribos, como a dos Charruas, não aceitaram o jugo que lhes quiseram
impor. E assim, por séculos, fustigaram o inimigo. Domesticaram o cavalo, a
ponto de suplantarem nesse dom àqueles que o trouxeram, e foi com ele que
lutaram contra o invasor. Lança e boleadeiras contrapondo-se ao fuzil e ao
canhão; táticas de guerrilha; heroísmo beirando o suicídio. Somente uma vez,
não mais, aceitaram compartilhar a sua bravura. Foi quando um paisano levantou
este pedaço do mundo, juntando todas as raças, sob um lema de igualdade: “Com
liberdade, não ofendo nem temo”, disse aquele general escolhido pelo povo. Ele
havia sonhado com uma grande pátria, sem latifúndios nem diferenças de raça. E
quase triunfou. No entanto, os interesses comerciais estrangeiros foram mais
fortes. Ideais de igualdade e justiça foram vencidos pelo servilismo e a
ganância dos seus conterrâneos. Traído, exilou-se. Os Charruas regressaram,
então, outra vez às suas correrias. Anos depois, ofereceram-lhes a paz.
Desarmados e desterrados, foram traídos também. Salsipuedes [1]
ainda é uma ferida não cicatrizada maculando a nossa história. Os últimos deles
foram expostos como seres exóticos em salas da Europa.
Uma outra raça formadora também resistiu ao desumano
extirpar de suas raízes. Com eles, da distante mãe-África, veio a voz profunda
e ritmada dos seus tambores e cantorias. As senzalas souberam da dor de tantos.
As charqueadas viveram dos seus braços. Os quilombos ouviram os seus gritos de
liberdade. Nos campos, as cercas de pedra ainda nos olham, feito sentinelas;
guardiãs e testemunhas desse tempo. Durante e depois - como sempre - a guerra.
Regada foi a terra com o sangue dos lanceiros de Canabarro; temíveis e
orgulhosos lutadores que somente seriam vencidos pela vilania daqueles em quem
confiavam. Daqui partiram os negros que morreram na tristemente célebre guerra
do Paraguai. E tantos outros em incontáveis revoluções. Sangue negro. Assim
como o sangue índio. E o sangue branco. Simplesmente sangue.
[1] Salsipuedes –
Lugar para onde a nação Charrua foi conduzida após um acordo com o General
Frutuoso Rivera. Ali, desarmada, foi massacrada e praticamente extinta.
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 17/07/2013
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