A notícia chegou como uma brisa leve: El Capitán está de volta! Ao redor do
fogo, em meio às campinas, a boa nova ia soprando de rancho em rancho. El Capitán está de volta! Diziam que ele
havia sido visto, lá para os lados das Coxilhas de Santa Marta. Não havia
dúvidas. Era o mesmo cavalo baio ruano, com as encilhas do Capitán. A mesma baeta
negra, cobrindo seu corpo. Os arreios de prata peruana, com as divisas
gravadas. A velha carabina Remington pendurada no costado. Era ele!
Aos poucos, a voz cantante cruzava a campanha. De suas
casas, homens e mulheres iam se reunindo. Nas esquinas dos povoados, nos
boliches, nas canchas de pencas. O que era sussurro virava alvoroço. Que vem revolução por ai! E era um tal
de limpar adagas, lustrar coldres, desempoeirar ponchos. Já de pronto havia uma
tropa formada aqui, outra acolá. E todos queriam confirmação. Era ele! Fora visto em passo manso,
vindo nesta direção. O mesmo chapéu ginete, desgastado e alquebrado. O mesmo
lenço, que El Capitán usava
atravessado, quase caindo sobre o ombro esquerdo. A mesma adaga longa, “de
sangrar milicos”, como ele dizia. E à medida que ia se atestando a veracidade
do fato, mais e mais se via os sorrisos, os tapas nas costas, os abraços. Largavam
tudo. O gado ficou sem rodeio. As roupas ficaram nos varais. A enxada jogada no
roçado. E todos iam se reunindo, cochichando, perguntando, discursando. Era
hora de arregimentar. De acordar do sono destas pazes negociadas em gabinetes.
Era hora de dar o troco. Liberdade e campereada outra vez! Já bastava de tanto
suor. De tantas manhãs, tardes e noites de labuta, para mal por o pão na mesa.
E aquelas malditas cercas? E estes arames que espetavam o pala e a alma?
Derrubar! Derrubar, que El Capitán está de volta! E se juntavam
bolsas de couro e lonas de cobrir. Panelas, alpargatas e chairas. Fumo, erva e
canha. E munição para que o inimigo não tivesse queixas. As mães penteavam os
filhos, benziam e beijavam suas testas. Vá
se aprumando, como fizeram teu pai e teu avô! Arroz, linguiça e sabão no
bornal. E um terço para que não faltasse proteção. No meio da praça, um
patrício dizia que El Capitán vinha
já com uns mil no regimento. E trazendo um dos chefes dos inimigos preso pelo
garrão. Ia cruzar a fronteira e incendiar os campos com fumaça e espoleta.
Levando a degola em uma mão e a justiça na outra. Tempos de guerra de novo! E a
peonada já falava em tomar a prefeitura e arrastar o Intendente porta à fora. O
padre correu para a sacristia, guardando a caixa de esmolas entre os lambris do
assoalho. No quartel, a milicada corria de um lado ao outro, se apetrechando
para dar combate. Até na rádio já tinham avisado. E o burburinho crescia. A
noite avançava e avançava também a distância que a notícia percorria. Lá para
os lados da capital, diziam, o governador falava em enviar forças da ordem.
Despachavam avisos, convocavam reservistas, cancelavam licenças. El capitán está de volta! E com ele o
levante, a fúria, a rebelião.
A esperança é como um rastilho que corre para
provocar a explosão. Velhos reviravam seus baús em busca de papéis mais velhos
ainda, que confirmavam direitos sobre um naco de terra. El Capitán vais nos devolver o que nos tomaram, diziam para suas
esposas, que se debulhavam em lágrimas. No salão paroquial, convertido em
quartel general rebelado, se preparava uma mesa e se ajeitavam as cadeiras para
receber El Capitán. E um camarada ia
fazendo a lista de demandas, rabiscando em nome daqueles que mal tinham
aprendido as primeiras letras, mas sabiam o que era seu de direito. No armazém,
o dono havia sido encurralado atrás do balcão, enquanto uma turba tratava de
reunir víveres para as tropas. E um outro já ia estraçalhando o caderno de contas,
alegando que em tempos de luta, cessavam as cobranças. Farinha, feijão e banha.
E um ou dois baralhos de truco. Tudo ia sendo colocado em sacos de linho. Mas
devidamente anotado, para o caso de “reparações de guerra”. Foi quando chegou
um vivente, apeando de seu cavalo e adentrando ao armazém.
O que tinha para
contar era como um balaço no coração. Não
tinha Capitán nenhum! Fora tudo invenção de um gaiato, para puxar prosa na
volta do fogo, lá para os lados de Santa Marta! Nem uma só palavra foi
dita. Um à um, todos foram voltando para o lugar de onde vieram. Baús e malas
se fecharam, assim como portas e janelas. O dono do armazém recolheu suas
mercadorias e juntou apressado os pedaços das páginas do caderno de dívidas. Do
outro lado da rua, o padre varria calmamente a soleira da igreja. O prefeito
enxugava a testa com seu lenço bordado. E o delegado puxava a cinta da calça
para cima, estufando o peito e exclamando: vamos
tomando o rumo das casas que, por enquanto, quem manda por aqui sou eu! Na
ponta do balcão, com um olhar sorumbático, depois de um longo gole de canha, um
paisano jogou o lenço sobre o ombro esquerdo e sussurrou: por enquanto...
Artur
H. F. Barcelos
Historiador,
Professor da Universidade Federal do Rio Grande FURG
Publicado na coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional em 17/04/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário