quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Intuição

Claude Monet - Canal em Amsterdam - 1874


Já repararam que na palavra prostituição, acrescentando a letra “n”, estará contida a palavra intuição? Há muito tempo ouvi uma estória e dela me lembrava ontem à noite. Daí surgiu a observação que faço, em atenção a uma mania que trago desde criança: perceber as relações entre os fatos da vida.

A zona de meretrício localizava-se próxima ao centro da cidade, num bairro que há muito não sentia o cheiro de tinta fresca. Os quintais das casas e o passeio público rivalizavam na sujeira; era um acordo tácito entre o público e o privado. Ali viviam trabalhadores de baixa renda, alguns desocupados e mulheres que optaram por morar próximo ao local onde ganhavam a vida.


Morava e trabalhava ali uma jovem de vinte e dois anos, que aqui tratarei por N. (acho que foi essa letra inicial que desencadeou o resultado das reflexões de ontem à noite). Tinha mãe ainda viva e jovem, mas ignorava o paradeiro do pai. À insistência da filha em querer conhecê-lo, a mãe reagia com impaciência e, decidida, não tocava no assunto. Fizera apenas duas concessões naqueles anos todos, revelando o nome e as circunstâncias do abandono.


Os sentimentos da mãe também foram revelados juntamente com aquele nome. Era cristalino para N. que a mãe ainda o amava, pois, se lhe revelava o nome, apesar de não admitir maiores conversações a respeito, é porque nominava um sentimento; se preservamos o nome, é porque o objeto, de alguma forma, está a salvo.


Mas a filha sabia mais sobre o pai do que supunha sua mãe. Nunca o vira, nem lhe seguira os passos, mas conseguira uma informação, absolutamente significativa, fruto do mais puro acaso. Pelos sentimentos da mãe e pela importância da informação, jamais revelou o segredo.


N. recebia seus clientes em sua própria casa, visto que não morava com a mãe havia cinco anos. Amava flores e plantas e tinha verdadeira paixão por pintura. O jardim da casa era bem cuidado; seu maior orgulho era uma orquídea que ganhara de um cliente. A partir de reproduções baratas de obras famosas da pintura universal, mantinha espalhados pela casa Picassos, Gauguins, Portinaris e seu autor favorito, Claude Monet. O gosto pela arte, de onde ele vinha, fantasiara que herdara do pai. A verdade é que, quando pequena, ainda freqüentando a escola de uma pequena cidade do interior, participara de uma excursão à capital em visita a uma exposição. O deslumbramento por ver aquela metrópole pela primeira vez fora suplantado pelo esplendor das cores, sombras e luzes.


O que de fato nos interessa ocorreu numa noite de terça-feira. Um homem, que nunca vira, bateu à sua porta em busca de seus serviços. Logo que entrou, causou-lhe uma pequena inquietação que foi aumentando, conforme conversavam e bebericavam antes de irem para o quarto. Ele tinha pouco mais de quarenta anos, estatura acima da média, porte atlético, como se diz. A voz macia e serena, seus gestos delicados, causavam em N. a impressão de aquele era um homem bondoso. Mas era triste aquele homem. Quando N. falava, seu olhar era distante, como se estivesse preocupado; como se fosse preocupado. Carregava um peso consigo, disso não havia dúvida. Freqüentemente olhava para o chão, embora não fosse tímido.


N. não conseguiria ir com ele para o quarto; o melhor a fazer era dispensá-lo, sair e tomar um pouco de ar fresco em alguma rua à beira do cais. Pretextou uma forte dor de cabeça e problemas de pressão baixa e pediu-lhe que viesse outro dia. Em outras circunstâncias, não teria agido assim; os homens costumam ser violentos quando lhe negam o prazer uma prostituta. Mas aquele não; aquele homem seguramente seria compreensivo com ela, como de fato foi.


O gosto pela pintura a levava freqüentemente ao Museu de Arte Moderna no centro da cidade. Nas tardes de sábado gostava de freqüentar galerias, ateliês e esperava ansiosamente por uma nova exposição no museu. Naquele sábado, a tarde seria toda dela. Nenhum dos clientes casados, que não podiam procurá-la à noite, agendou encontro. Vestida com sua melhor roupa, foi ao encontro das obras de artistas hispano-americanos, com destaque para os mexicanos.


Gostava de assinar o livro de presenças; era um ato de comunhão, dizia ela à mãe. Na pequena fila que se formou diante do livro uma visão inesperada quase a fez desistir. O homem daquela terça-feira aguardava a vez imediatamente antes dela. Quando ele assinou e virou-se lateralmente para dirigir-se à porta de saída, ela inclinou o rosto para baixo para não ser reconhecida. Com mãos levemente trêmulas assinou o livro e leu o nome que estava logo acima do seu. A forte emoção tomou-lhe conta do corpo, que caiu ao chão; depois da explosão, a implosão. Quando voltou a si, aceitou um copo d’água que lhe ofereciam, disse que estava bem e que já poderia ir. Saiu e sentou-se em um banco na praça em frente ao museu. Após quinze minutos contemplando os pombos que por ali mendigavam, dirigiu-se à igreja, a dois quarteirões dali.


Em lágrimas, pediu a Deus que perdoasse e protegesse aquele homem e agradeceu por não ter levado para o quarto o assassino de seu pai.




Edson Martins

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