O insólito abrigou-se por aqui, caverna mítica do surrealismo |
Lá pelo inicio
de 2011 recebi encomenda para a comemoração do segundo aniversário do Poesia no
Bar que iria acontecer em junho daquele ano.
Infelizmente não pertenço ao
seleto grupo de afortunados que tem ligação direta com as vozes dos escritores
do Além, que ditam ao ouvido do felizardo poemas, escritos variados, contos e
até poemetos genialmente musicáveis, exigindo-se apenas uma caligrafia ágil.
Tem-se assim, para gáudio de nossa literatura, autores que nos brindam com
abundância seus livros psicografados.
Ao
contrário, meus contatos com as musas, fonte de toda a inspiração segundo os
gregos, são oriundos de muito trabalho mental e físico. Às vezes, acontece-me
de encontrá-las num banho de rio, ou numa noite mal dormida, raras vezes foi
produto de sonho, geralmente surgem enquanto faço longas caminhadas olhando
para o chão. Contra todos os meus prognósticos, foi numa noite de temporal que
tive a visão. Estava deitado e transportaram-me aos abrigos dos nossos
antepassados. Creio que não cheguei a levitar, apesar da nítida sensação de
sentir meu corpo planando suavemente no espaço. A intempérie e seus acessórios, raios,
relâmpagos, trovoadas, ventanias e trombas d água, compuseram o cenário
aterrorizador da natureza e a proteção que uma caverna poderia proporcionar,
mesmo com todos os demônios que pudessem viver lá muito dentro dela.
Então,
pude visualizar a cena. Alguns cromagnons sentados em torno do fogo beliscavam
um picadinho de mamute e comungavam de uma beberagem ancestral enquanto
narravam as aventuras do dia. Consigno a Calíope, a musa que se ocupa da poesia
épica, esta dádiva. A imagem do bar primevo, da caverna fundamental, foi a
chave que abriu a porta da poesia Ode aos Bares. Convenientemente, como de
costume, alertou-me nosso filósofo e primeiro imediato sobre o bom convívio com
as filhas de Mnemósine, invocando a frase do poeta Ruben Dario: Cuando uma musa te dé un hijo, queden las
otras ocho encintas.
Dentre as
cavernas míticas que ocupam a nossa memória, a memória da tripulação Cazumbi do
Galileu, encontra-se o Bar do Patiño. Numa esquina a duas quadras da Estação
Rio Branco, o bar era o ponto dos bagageiros à espera do trem que partia altas
horas da noite ou dos que chegavam pela madrugada. Nós o descobrimos não sei
como. Coisas do Venerável. Íamos a pé, atravessando a ponte, passadas mais ou
menos largas, acompanhando os dormentes dos trilhos, feito romeiros, mais que
pagando promessas, fazendo preces, raramente atendidas. Impelia-nos a fé na
arte como caminho para a redenção. A redenção quase sempre atendia pelo nome de
alguma mulher, e havia tantas para outros tantos, que recorrentemente nos ignorava.
Éramos
inclusivos. Acolhíamos os desprezados, os que não tinham turma. Os que falavam
às paredes e não recebiam resposta.
No bar do Patiño, um deles
era o Perneta. Sua face não me era estranha. Pertencia à ala dos testas altas. Atuou
no papel de Julio II em Agonia e Êxtase, filme sobre a vida de Michelangelo, quando
compunha a figura de pai e líder de todos os cristãos na integridade de todos
os membros. Foi conhecido como o Papa Guerreiro. Um dos nossos só o relembra na
condição de um vago espectro. O Venerável afirma que era um ex guarda barreiras
que foi abandonado pela noiva, uma morocha do Poblado Uruguay. A perna teria
sido perdida numa trágica caçada de capincho. Contam que tempos depois, recuperado do acidente, por um par de semanas andou
exibindo com orgulho uma flamante, de madeira, mandada fazer em um carpinteiro de Fraile
Muerto, conhecido por suas habilidades em próteses campeiras. Depois voltou à muleta. A um seu
amigo, o Capenga, sentara-lhe tão bem a perna de reposição, que resolvera
alugá-la a preço módico. Quando nos pressentia chegar, num portunhol bem
falado, se jactava com petulância do seu melhor destino: “agora es distinto, llegó mi barra.” Já com o violão em punho, muleta ao lado, abria cantando a única música
que nos ficou na lembrança, talvez pela dramaticidade que expressava, fazendo o
compasso com a perna que ainda a tinha natural: “miña mulher é uma brasa, cuando eu chego em casa, dá-se logo uma
explosão..”
Miguel Angel Patiño Mederos, figura impar e fazedor de histórias O bar agora lhe serve de moradia |
O Patiño,
atrás do balcão já se entusiasmava desafiando alguém para um exercício de
pugilato, com luvas de boxe e tudo. Armado rapidamente o ringue, contra o
boxeador e manager de longos cabelos louros adornados por chapéu de plástico
preto, e que morava ali por perto do Club Artigas, desenvolvia-se o entrelace
conflitivo de ágeis punhos em jabs, cruzados e diretos. Daqui a pouco, em menos tempo que durava um
cálice de canha, um dos lutadores, o Mão de Luva, desvencilhando-se dos
jogadores de bilhar, já aparecia sentado ao piano na sala contígua (era um piano de cauda e o mistério é como
havia sido introduzido, devido ao tamanho descomunal), com os dedos livres,
tascando uma cumparsita ou balalaika cumbiada, enquanto anões, magos, gaúchos, palhaços,índios,
ciganas, seres de todo o tipo conhecido ou por conhecer, entre fardos de
açúcar, malas de erva mate, damajuanas de canha, pacotes de massa, rapadura e
tijolinhos, bombons garoto e o que mais pudesse ser comercializado, belzebeavam,
formando aquela troupe que introduziu o Dadaísmo nos limites desta
fronteira.
Jorge Passos
Texto publicado na coluna Gente Fronteiriça do jornal Fronteira Meridional do dia 09/01/2013
Um comentário:
Você ai
de cabelos grisalhos,
mas ainda tão moço,
não me leve a mal,
mas será
que ainda se lembra
do picadinho do Anibal.
Naquele bar
na beira do rio
onde se reunia
em plena madrugada
a saudosa boemia.
Era ali
que o pessoal esticava
quando o "peixe" terminava.
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