A DIFÍCIL VIDA FÁCIL
Estes Contos da vida difícil são uma obra
da imaginação que não vai além do imaginável, porque está
contida na busca das razões do esquecimento, na revelação de
certas lembranças não-autorizadas e na tentativa nem sempre bem
sucedida de recuperação de uma olvidada memória coletiva.
São velhas e sumidas histórias jaguarenses que
todos fizemos questão de ocultar desde o início do século XX e
cuja lembrança foi preciso reprimir, excluir e suprimir,
especialmente a partir de 1930 − e até hoje, já vão quase cem
anos.
Jaguarão, que só em 1904 tivera enfim seu porto
fluvial aberto à navegação com o Uruguai, viu construir-se entre
1920 e 1930 a grande Ponte Internacional que a ligaria
definitivamente ao país vizinho. Nesse período, centenas e centenas
de homens − um milhar e pico de homens, talvez − das mais
variadas raças e mais diferentes procedências, dos mais diferentes
ofícios e das mais variadas habilidades viveram na cidade aquilo que
se chamaria “a grande epopéia da construção da Ponte”. Foram
dias, meses e anos em que naturalmente a cidade se encheu de
mulheres, apareceram automóveis e gramofones, surgiram negócios e
empregos, construíram-se casas e fortunas − era farra e trabalho,
trabalho e farra. De noite, havia luz elétrica, música e bochincho:
os cabarés iluminavam-se até de manhã; e mesmo os lugares mais
pobres, os tristes puterios das margens do rio ficavam acordados no
alvoroto que se armava noite afora (e era como se fossem alegres, e
ricos).
Entre 1930 e 32, as redes de traficantes de
mulheres tornaram-se escandalosamente públicas nos limites do Brasil
com o Uruguai. Nossa fronteira transformou-se num lugar privilegiado
para a circulação de mulheres europeias e dos proxenetas que
buscavam introduzi-las no Brasil a partir do Atlântico Sul, fugindo
da perseguição policial que atingia “o tráfico de escravas
brancas” na Argentina e no Uruguai. O Rio de Janeiro era o mercado
de colocação preferido; Montevidéu, um refúgio e base de
operações; e Jaguarão, com nosso rio e sua Ponte, o lugar
escolhido para uma parada delas, de passagem clandestina para o
Norte.
Essas informações (como tantas outras sobre o
assunto), eu as obtive em um livro. publicado com o título Las rutas de Eros (Taurus, 2006), pela pesquisadora uruguaia
Yvette Trochon sobre o tráfico de mulheres nos países do
Atlântico Sul, de 1880 a 1932, incluindo estudos documentados das
condições sociais, políticas e econômicas que tornaram possível,
na época, a difusão por aqui do rendoso negócio de compra e venda
de seres humanos.
Poderá parecer que estes contos, rompendo com um
silêncio cúmplice e conivente sobre as misérias da chamada “vida
fácil”, não passem da retomada de um passado distante. Contudo,
restritos aos limites do imaginável, situam-se no plano de uma mesma
e permanente realidade que, se não se esquece e se oculta
deliberadamente, tem sido abordada com os prejuízos e preconceitos
característicos de uma sociedade conformada por suas próprios
mazelas.
O tema relativo ao mercado prostibulário e,
especialmente ao tráfico de mulheres foi sempre desenvolvido através
de estereótipos, no plano do melodrama de folhetim e do
convencionalismo conformista, através de um discurso moralizador de
grande poder emocional que o deturpa e que encontra eco na pregação
de certos religiosos e reformadores sociais.
Por tudo isto, as histórias de mulheres e homens
de vida fácil, girando em torno da sedução barata, da violência
gratuita e da perversidade maniqueísta, não têm lugar aqui.
Aldyr Garcia Schlee
Capão do Leão, verão de 2013
O novo livro de Aldyr Garcia Schlee, Contos da vida difícil, será lançado nacionalmente no próximo dia 23, na Bibliotheca Pública Pelotense.
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