As paredes coloridas criam uma
atmosfera agradável. Veem-se pinturas em diversos estilos: alegres, tristes,
comerciais, engajadas, pacíficas, irritadas, debochadas, que dizem algo ou nada
comunicam, sóbrias ou perturbadoramente à beira da loucura. Cada tanto, uma
tela chama a minha atenção: uma bela jovem emigrante, italiana ou francesa, num
vestido preto que contrasta com a pele clara, sentada sobre um baú no convés,
pensativa, viaja rumo à América. O mar embravecido ao fundo cria ondas e sulcos
de dar vertigem, com crestas de branca espuma, enquanto o vento agita-lhe o
longo cabelo escuro amarrado em cauda. Uma onírica paisagem montanhosa que só
contém igrejas cristãs ortodoxas, de
torres binárias, com as suas características cúpulas arrematadas em
forma de cebola. Lá embaixo, numa abertura entre duas montanhas, sobre um
pequeno vale surgido como de um delta, um aqueduto ou uma ponte,
e entre o céu brumoso e o ar rarefeito, pequenos e enigmáticos balões coloridos
se elevam ou descem, e são como folhas secas flutuando na viração, numa tarde
de outono, ou uma chuva de docinhos durante um sonho febril. Em outra imagem,
uma mulher de meia idade: usa um lenço amarrado na cabeça, tem os traços fortes
duma camponesa e o olhar sem brilho. Me faz pensar nos que trabalham muito e
colhem pouco da vida, seres com alegrias e tristezas simples e elementais, em
cujas existências a fartura é um fermento que apenas basta para levedar seu
pão.
Quatro colunas circulares
arrematadas em capiteis coríntios franqueiam a entrada. O estilo neoclássico
desse edifício conservado em estado impecável, já justifica a viagem. Em seu
interior, vitrais policromáticos no teto filtram a luz do sol criando um efeito
de encantamento. Descemos até o cofre guiados pelo gerente. Onde antes era
depositado o dinheiro, hoje funciona um café. Seguimos o caminho: nas paredes
dos corredores há vitrines com lembranças cunhadas em documentos, moedas e
bilhetes já em desuso. Grandes colunas quadradas sustentam as elegantes e
ricamente trabalhadas vigas do teto e as balaustradas em arco. Sinto que essa
visita foi a minha grande experiência estética na capital gaúcha.
Nos tapetes feitos com confetes
pela artista açoriana Catarina Branco evidencia-se a origem duma tradição
religiosa que cada ano se comemora em Jaguarão. Tapetes como os apresentados no
Érico Veríssimo pela artista portuguesa formam o caminho que andam os romeiros
entre as igrejas do Divino Espírito Santo e a Imaculada Conceição, em nossa
cidade, durante a celebração do Corpus Christi. Numa parede branca desse prédio
onde funcionara a antiga CEEE há belas figuras circulares que lembram as
ornamentações geométricas usadas pela arte islâmica nas mesquitas. Milhares de
lagartixas de plástico foram usadas par criar essas formas. O efeito é muito
agradável ao olhar.
Vinte anos de carreteis. Cores
escuras e o mesmo assunto a se repetir num desdobramento obsessivo. Há uma aura
de pessimismo nesses quadros. Por que alguém passaria vinte anos pintando carretéis de costura, chinelos, talheres ou chapéus? No caso desse artista
seria a hérnia de disco que o obrigou a se fixar no ateliê? Aluma mágoa da
infância que veio à tona ao sentir o efeito do tempo em seu corpo? Talvez o
sacrifício da mãe costureira como que aparafusada à cadeira enquanto fazia
girar a engrenagem da máquina de trabalho que lhe consumia a vida, medida em
metros de linha, carretel após carretel? Não sei. Mas por alguma razão
misteriosa esses carreteis, essa obscuridade geométrica a repetir-se tela após
tela, me falam do desencanto urbano contemporâneo e da vida racionalizada. O
sul-africano William Kentridge fez um lindo rinoceronte com recortes de jornal.
Pinta e desenha usando traços rápidos que me lembram a caligrafia dos mestres
zen japoneses. Seus desenhos, suas pequenas esculturas de homens e mulheres em
movimento parecem retratar a atividade das pessoas comuns enquanto trabalham. É
um artista experimental, dizem. E experimenta brincando ou brinca
experimentando. Percebe-se uma energia positiva em seu trabalho.
Darío Garcia
Publicado na Coluna Gente Fronteiriça do jornal Fronteira Meridional em 21/08/2013
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