Aconteceu.
Havia um certo clima pesado no ar. Dizem que depois do sucedido em
64, a guarnição local, tendo alguns de seus oficiais reformados por
demonstrarem lealdade à Constituição, apresentava sinais de
descontentamento. Falou-se que o responsável pela manutenção e
guarda do imponente prédio situado no Cerro da Pólvora, onde
circulavam rumores de gente torturada nos seus porões, a pedido de
uma favorita sua, moradora das redondezas, concedeu à moça a
regalia de retirar algumas telhas.
Tira,
disse ele.
Ela
tirou.
Todos
tiraram.
Éramos
crianças. Disso ou daquilo pouco sabíamos. O Thadeu, guri de 12 anos nessa
época, além de estudar, se virava buscando alguma farinha e
querosene do Uruguai no bagageiro da bicicleta para faturar uns trocos. Trazia pro armazém
do Seu Alcides, ali na rua onde passava o trem, não muito longe da
Venda do Barriga Murcha. Também fazia a
cobrança da mensalidade do Clube Suburbano. Os sócios, na maioria, era tudo gente da família. Barbada.
Até
hoje não há gente muito disposta a tratar daquele assunto. Afinal, as
ruínas não foram resultado de uma invasão dos castelhanos, nem de
lutas entre revolucionários, maragatos ou chimangos.
Foi
um ataque de formigas.
A
suposição que se pode fazer pelo descaso, é de que grassava um
espírito do novo, do moderno, do concreto armado, do milagre brasileiro, no pessoal que tenenciava em Jaguarão.
O grande sonho era ter um arranha céu pra colocar a cidade no mundo.
Chega de velharia diziam. Por isso, mesmo que fosse patrimônio
público, era melhor que caísse mesmo. Assim foi também com os
trilhos, virando poste de aramado de estância. Coisa sem serventia.
Um
tio do Thadeu contava. Era assombrada. Mal assombrada. Cansou de
tirar serviço por lá e sem mais nem menos, ouvir barulhos de prato
e panelas na cozinha. De correr pra ver quem era e não encontrar
vivente, nada. Muita gente do lugar contava também ouvir gritos que
vinham de lá. Almas dos presos massacrados, dizia-se. Eu, de vez em quando, visitava uma tia minha que morava bem na bocada do Cerro. Antes de ser desativada, recordo os seus corredores, um homem de tapa-pó branco me aplicando vacina. Uma irmã minha chegou a dar aula em suas salas, num estágio do Curso Normal do Colégio das Freiras.
Talvez
haja outras versões sobre o fato. O que é certo e está ainda na
memória do Thadeu, é que numa certa manhã de 1967, da esquina da
rua do Cordão onde morava, viu um formigueiro de gente no encimo do
Cerro da Pólvora, trepando nos muros da enfermaria, todos às voltas
com as telhas, azulejos, cerâmicas, portas, trincos, o que fosse
aproveitável. De longe, parecia um carreiro formigante coqueando
tudo nas costas. Gente pobre que sobrevivia em ranchos de pau a
pique, casas de lata. Como desse.
Quem
olha por entre os portais do que fora a antiga Enfermaria Militar
pode ver ao longe , lá embaixo, a fronteira, a ponte, as águas do
rio fazendo a curva em direção à Lagoa e a vista inteira, quase,
da cidade.
Passados
uns dez anos do ataque das formigas, o Thadeu curtia uns Led
Zeppelin, uns Black Sabath na eletrola do Bárbaro Xavier. O Bárbaro
morava na encosta do Cerro, bem defronte às ruínas, Porão do
Marinheiro, como dizia o Caneco.
Iluminado
por esse som endiabrado e pelo clarão da lua, ao sair desse covil do
rock, o paisano Thadeu, que já o era, vendo as sombras da
enfermaria, o céu bonito, as pedras de fogo, é inundado pela visão
e compõe ali mesmo os primeiros versos do Cerro da Pólvora. Em 78,
já em Pelotas, na casa dos estudantes, atormentado pela saudade,
escreve a parte final. A melodia veio na carona das zambitas do
Atahualpa e do Cafrune, mas de um jeito especial, meio cheirando a
campos do Telho.
A
música em seguida foi posta na roda da paisanada e foi virando hino
nas serenatas. O Reinaldo Sapo, que além de produzir eventos
musicais, dizia-se em seu curriculum ter hospedado o Ronnie Von, fato
não comprovado e inclusive desmentido com veemência, pois
juram que o renomado cantor da jovem guarda ficou numa casa defronte
ao colégio onde funcionou o IPA, e o Sapo morava num bairro afastado
do centro e além disso, não teria condições de hospedar ninguém,
a não ser gente da família, organizou e muito bem organizado, em 1980, o Festival
Jaguarense da Canção no Teatro Esperança. O Cerro da Pólvora foi
a vencedora.
Não
se sabe se foram esses versos do Thadeu que estimularam um desejo de
restauração, mas pouco depois, o Valdo e sua turma, estudantes de arquitetura em Porto Alegre, lançaram o Projeto Jaguar visando
valorizar e preservar aquele espaço.
Hoje,
lá no alto, em roda do Cerro da Pólvora, porteira da Ponte Mauá,
começa a ser erguido, sobre as ruínas da Enfermaria, o Centro de Interpretação do Pampa. Depois da tormenta que trouxe a escuridão,
como um moleque gambeteando pelas ruas, andorinha ao vento, vai ressurgindo por esta fronteira, ares de um renovado tempo.
Jorge Passos
Thadeu Gomes – jaguarense, músico autodidata,
psicólogo formado pela UCPel, em l983 e Pós-Gruaduado, em 2002 pela Sociedade
Brasileira de Psicanálise-SP. Sua monografia enfocava aspectos do ator
e do teatro. Atualmente atua como profissional liberal e também junto à Pref. Munic.
de Uberaba-MG, como Psicólogo Clínico.
3 comentários:
Jorge, parabéns pelo texto. Há tempos gostaria de ouvir esta história de alguém que vivera intensamente aquele momento. O surgimento da música Cerro da Pólvora. Os acontecimentos. O resgate desta gurizada (hoje cinquentões), que marcaram a história.
O presente é feito de passado e carrega em si o germem do amanhã. Grande Abraço. Maninho
Parabéns Jorge, lindo resgate de nossa história. Abraços.
Hilda Pacheco
Obrigado pelas manifestações. Isso nos estimula a seguir trabalhando em prol da imagem e da história de Jaguarão.
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