É
uma ideia contraditória, devo admitir. Mas com o passar do tempo
comecei a entender que todas as ideias são essencialmente
contraditórias. Tive uma discussão certa vez com um grande amigo
sobre o que fazia um escritor. Não qual era o seu papel, mas sim, do
que ele era feito, pensamentos, influência, imaginação, pontos
fixos, pontos variáveis, coisas que fazem sentido depois de algumas
cervejas. Naquela mesma noite eu não voltei pra casa.
A
noite já havia coberto o céu já há algumas horas, os transeuntes
já haviam hospedado os seus passos sob o calor dos seus lençóis,
já dormiam também tranquilamente os seus sapatos, quando no meio do
caminho eu descobri, havia uma esquina.
E não
uma esquina qualquer que tende sempre a curviliniedade. Era uma
esquina que vinha depois de uma rua, e dentro dessa rua, daqueles
cinquenta metros que abrigavam casas de tijolos e de vento, havia
outro mundo. Lá, naquela rua o tempo andava para trás.
Quando
na esquina, eu vi um carro, um pequeno carro, menor do que a menor
distância e esse carro andava para trás. Em um primeiro momento
pensei o mais lógico, naquela rua tudo deveria andar ao contrário,
em seguida fui tomado pela complexa ideia de que por algum motivo
aquele carro estava dando marcha ré. Mas como quase sempre, acabei
por descobrir que a ideia mais simples era a correta, as coisas
naquele pequeno receptáculo de mundo, andavam em um sentido oposto.
Emprestei
meus passos para o asfalto que separava mundos, e por força de um
destino que nunca me será explicado, adentrei a rua em que o mundo
se reinventava. Dentro dos meus passos, acompanhantes de minhas meias
e do meu suor, encontrei outros passistas, que como eu, estavam
naquele instante no mundo reverso que há dentro do mundo. O primeiro
com que conversei era um cantor e ele que também tinha um nome ao
contrário me disse, chamamos este lugar de “ A ILHA”.
A
ilha era linda, havia praias em lugares onde o asfalto parecia ser o
proprietário, ilusões de ótica, explicou-me o cantor, havia boa
música de onde parecia vir o ruído de britadeiras e
liquidificadores, ilusão sonora me explicou o cantor, havia paz onde
grades pareciam se erguer e flores em lugares onde eu sempre ouvira
dizer, haveria armas, ilusão informativa me disse o cantor. Eu
apenas concordei, eu era um jovem desvirginando um mundo novo repleto
de realizações silenciosas e sutis.
Uma
das coisas mais interessantes que me aconteceu naquele mundo de
maravilhas do outro lado do espelho, foi a persecução que sofríamos
dos cachorros. Eles nos acompanhavam e há quem diga, neste mundo de
onde hoje escrevo minha história, que eles até participavam em coro
de algumas canções. Pode ser que sim, acredito nisso. Eram noites
de serenata aquelas, havia sempre tempo para serenatas naquele lugar.
Do
outro lado dos muros invisíveis as pessoas pareciam caminhar ao
contrário.
- Há
um nome para isso. - explicou-me o cantor – Chama- se efeito da
reversão reversa.
-
Reversão reversa? Isso não é contraditório?
-
Olhe em volta – replicou o cantor- algo aqui não é contraditório?
Com
aquela pergunta em mente segui andando sobre meus passos, eram
cumpridos e definitivos , além de terem uma sonoridade interessante,
parecia que eu caminhava sobre a chuva.
-
Gosta do som dos seus sapatos? – Perguntou-me o cantor
-
Sim, é diferente no lugar de onde venho.
- É
que aqui nós temos uma lei para sapatos.
- Lei
para sapatos? Como assim?
- Os
sapatos devem realizar determinado ruído quando estiverem aqui
dentro, é uma questão de padronização.
- E
os sapatos cumprem? – Questionei com um sentimento de zombeteiro
curioso.
- Os
que não cumprem não são bem vindos a ilha. Somos iguais por aqui,
nossos sapatos devem também o ser.
-
Creio que meus sapatos tenham se adaptado.
-
Sim, devem ter tido acesso a lei municipal.
- Mas
como, eu não vi lei alguma – Disse realmente intrigado.
- Ela
está gravada no chão, afinal é uma lei para sapatos não para
homens- respondeu-me o cantor em tom depreciativo, acabei por sentir
que havia feito a pergunta mais estúpida do mundo. Meus sapatos
seguiram caminhando sobre a chuva que não caia, e crianças em
esquinas dentro da esquina pintavam sóis com giz.
Nicolás Gonçalves
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do jornal Fronteira Meridional do dia 11/07/2012
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