Arte: J. Passos |
O louco Deixaqueeuchuto parou em frente à estátua e, sem
atentar para o respeito que aquela imagem deveria representar,
sentou-se em seu pedestal. Arrumou a sua perna torta como pôde.
Tirou, então, do bolso uma garrafa de cana e tomou um gole fazendo a
careta costumeira. Com um gesto ofereceu a garrafa para o seu novo
companheiro.
No começo não gostara daquela intromissão em seus
domínios, afinal, a praça era sua. Sua e dos pássaros; porém, com
o tempo, fora se acostumando. Já os pássaros... esses, sim, não se
acostumaram nunca: desde a inauguração, afastaram-se dali. Primeiro
os colibris, depois as pombas e, por último, até mesmo os pardais.
Os pardais que a tudo se adaptavam. Nem eles ficaram. Nenhunzinho.
Talvez achando que estavam sendo vigiados, talvez por algum outro
fenômeno que a sua mente simples não conseguia entender muito bem.
Percebera, também, outra coisa: desde o dia da inauguração as
crianças também foram rareando. Rareando... e um dia ocorreu de não
voltarem mais. Isso o incomodou bastante, porque ele sempre gostara
daquelas algazarras na sua praça. Gritos e correria. De vez em
quando algum choro passageiro. Gostava disso. Só ficava um pouco
chateado quando elas mangavam da sua perna: “Aí vem o
Deixaqueeuchuto... aí vem o pé-pé do Deixaqueeuchuto”
– gritavam. Aí ele tentava correr atrás delas... mas era só de
brincadeira... ele gostava de crianças. Inclusive uma vez um grupo
de meninos fez aquela gozação de mau gosto e - por azar - o
menorzinho se enredou com o chinelo-de-dedos e caiu. Ele poderia ter
agarrado o menino e, assim, dar-lhe uma lição. Mas qual? Ele não
saberia o que fazer. Sabia xingar. De longe. Mas não era esse o
caso... por isso parou de correr e esperou que o menininho levantasse
e desse no pé. Aí, sim, xingou. Eles correndo e ele xingando. Nisso
era bom. “Gurizada de uma figa”.
Agora
estava ali, sentado. Tomando cachaça e pensando que a praça ficara
mais triste. Ele não gostava muito dos pássaros, mas agora
concordava que eles faziam falta. Eram tão donos da praça quanto
ele. Onde estariam? Perguntava em pensamento. Mas o pior mesmo era a
história das crianças. Sentia falta até mesmo das gozações.
Olhava para a perna e ficava lembrando: “Aí vem o
Deixaqueeuchuto... aí vem o pé-pé do Deixaqueeuchuto”.
Não!... Agora elas não vinham mais, e - como não vinham - não
tinha a quem xingar; nem de quem correr atrás. Por isso aquela
estátua se tornara a sua única companhia; ainda que ela, talvez,
tenha sido a causa dessa sua solidão. Pensava isso porque notara que
as crianças, invariavelmente, abriam o berreiro quando se
defrontavam com a imagem. E não adiantava os pais tentarem fazê-los
se acalmar. Só quando se afastavam é que cessavam a choradeira.
Tomou
outro gole, secou os lábios com a manga esfarrapada da sua camisa
xadrez, e, então, uma ideia lhe veio à cabeça. Sim... porque não
pensara nisso antes? Claro! Era tão simples.
No dia
seguinte o louco Deixaqueeuchuto apareceu na praça principal
de San Cervando. Não era tão bonita quanto a sua praça, porém lá
estavam os pássaros. Centenas deles. Muitos. E estavam as crianças.
Elas, ao vê-lo, gritaram: “Aí vem o Deixaqueeuchuto... aí
vem o pé-pé do Deixaqueeuchuto”.
Sentiu-se feliz. De uma felicidade infantil. Feliz como as crianças e os pássaros que antes habitavam a sua praça. Correu atrás de um grupo de pivetes... meio rindo, meio chorando. Correndo e xingando: “gurizada de uma figa... gurizada de uma figa”. Ouviu ainda uma zombaria de um adulto engravatado que, desde a porta da prefeitura, olhava a cena: Ô louco! Resolveste mudar de praça? Sem parar de correr, o Deixaqueeuchuto se virou e respondeu-lhe: Sou louco sim, mas não sou burro. E seguiu correndo.
Sentiu-se feliz. De uma felicidade infantil. Feliz como as crianças e os pássaros que antes habitavam a sua praça. Correu atrás de um grupo de pivetes... meio rindo, meio chorando. Correndo e xingando: “gurizada de uma figa... gurizada de uma figa”. Ouviu ainda uma zombaria de um adulto engravatado que, desde a porta da prefeitura, olhava a cena: Ô louco! Resolveste mudar de praça? Sem parar de correr, o Deixaqueeuchuto se virou e respondeu-lhe: Sou louco sim, mas não sou burro. E seguiu correndo.
Martim César Gonçalves
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional do dia 26/06/2012
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