A Cândido Rodrigues, engraxate e jornaleiro
Naquele sábado, eu corria
que nem um louco para aprontar o jornal. A impressão andava péssima, o mecânico
custava a acertar o nível do rolo na chapa. Eu ainda tentava compor alguma
matéria na tipografia. O pó, na caixa dos tipos, entranhava-se em minhas narinas
e eu espirrava a toda hora, mal conseguindo respirar. Meus dedos estavam
encardidos com a tinta preta, não podiam coçar o nariz nem espantar as moscas.
E a caspa, no cabelo, comichava minha
cabeça. Ali perto, debruçado na bancada, avental todo lambuzado, a careca
brilhando sob o quebra-luz que pendia do teto,
o velho Arcanjo resmungava por se encontrar atrasado na montagem da chapa.
Odores fortes de tintas e
suores sobrepairavam no ar. Alguém
entrou na oficina me procurando. Sobrancelhas e bigode cerrados e negros, um
porte respeitável não fosse a boca desdentada, vestia uma camiseta de lã
desbotada, calça xadrez, cordão amarrando a cintura, chinelos de dedos: era seu Cândido, o engraxate da praça, que se dispunha a
distribuir o jornal em troca de algum a mais, reforçando a féria do dia.
Logo o prelo fazia trepidar
o prédio inteiro, o rolo girando envolto no papel enquanto a chapa deslizava e
voltava à posição inicial, depois de largar a folha maculada no aparador.
Dobrávamos os jornais, acomodando-os dentro das bolsas. Era a primeira vez que seu Cândido fazia esse tipo
de serviço. Competia-me indicar as casas em que devia proceder a entrega. Lá
fora, raios e trovões, uma chuva torrencial. Era nossa obrigação atender os
assinantes, apesar da precariedade dos guarda-chuvas como abrigo.
A sensação de desconforto
se acentuava à medida que progredíamos nessa tarefa, ansiosos por trocar a
roupa ensopada, beber um café quente, esquentar o corpo. Eu cantava o número de
cada casa, seu Cândido
passava o jornal amolecido pela umidade
na soleira das portas e respondia com o nome do bicho. Ele tinha a sua ilusão de acertar e se
despedir dos biscates. Era simplório, mas possuía
um senso de humor incomum. Assim, eu
ficava observando aquela criatura que parecia se derreter, gotas pingando do
rosto vincado pelas rugas de um envelhecimento precoce, que nem o capuz do
impermeável amarelo conseguia esconder.
Ruas encharcadas, o barro
grudando nos pés pesados que chacoalhavam em lâminas de água. Sapos, grilos, um
rádio tocando, a madrugada tinha seus ruídos. Alguma luz por detrás de um
postigo encostado numa janela qualquer, por certo, um notívago assuntando
entre paredes, no calor das cobertas.
- “Mil duzentos, cinquenta e cinco” - dizia eu
apontando para o armazém do Armando Costa e me imaginava chegando mais cedo: a
venda logo fecharia e o dono, aguardando o jornal, chamar-nos-ia para dentro,
ofereceria mortadela fatiada e pedaços
de pão. O apetite voraz, a saliva se esgotando na boca, o picante de uma
pimenta inesperada, o copo de vinho para não engasgar, uma vontade danada de
ficar por ali, sentado nos sacos de batata, esperando a chuva passar...
- “Gato” - berrava seu
Cândido, à porta do armazém em que havia deixado o jornal,
arrancando-me daquelas cismas.
José
Alberto de Souza
poetadasaguasdoces.blogspot.com.br
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional do dia 28/11/2012
3 comentários:
Ilustre Passiano:
Mas que baita rasteira, fez me emocionar até às lágrimas, lendo esse texto numa belíssima página da Confraria. Apesar de não constar o autor da ilustração, não creio que fosse tirada da Internet, e assim divido com esse artista plástico os méritos do que foi ali apresentado. Parabens, pela coragem de homenagear uma figura popular tão marcante.
Caro amigo, a Confraria se sente honrada de te-lo entre nossos colaboradores. Este texto em que você narra suas peripécias jornalisticas, nos fazendo sentir o cheiro da antiga tipografia, os pingos da chuva sobre os jornaleiros, o velho armazém do Seu Armando, o resgate da figura de um companheiro como o Cândido, é muito emocionante mesmo. Quanto à ilustração, faltou-nos mesmo dar o devido crédito, trata-se de uma imagem em que fiz algumas alterações, coletada na página : http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/setembro/dia-do-jornaleiro.php pelo dia do jornaleiro e por sua vez retirada, segundo o portal citado, da revista do jornaleiro, edição de outubro de 2004. Autor desconhecido.
Forte Abraço e siga escrevendo essas coisas maravilhosas.
Mas que coisa, Passiano:
As suas adaptações vieram bem a calhar e você foi bastante feliz, apagando aqueles sinais da "metrópole" e deixando mais próximo de um dia chuvoso.
A concretude que você apanhou no texto foi resultado de um exercício da Oficina Literária do Assis Brasil, em que o mestre nos solicitava para fechar os olhos e imaginar sons, cores, cheiros, enfim tudo aquilo que tocasse nossos sentidos.
Até chegar ai, foi um longo aprendizado e, por isso, valorizo bastante esse texto que já foi publicado por duas vezes n"A Folha", mas que perdeu um pouco da sua autenticidade, face o descaso de ser tratado como "cartas do leitor"...
JA Saudações.
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