Capitanes
de la Defensa de Paysandú, hermanos Pedro, Maximo y Rafael
Rivero,
capitanes Lidoro Sierra y Garcia. Diciembre de 1864.
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Na década de 60 do
século XIX, às vésperas da Guerra do Paraguai, distúrbios
políticos internos no Uruguai provocaram enfrentamentos bélicos que
envolveram brasileiros no cerco da cidade uruguaia de Paysandu e, em
contrapartida, a invasão da cidade brasileira de Jaguarão por parte
de uruguaios. Por suas resistências, ambas cidades passaram a
ostentar títulos de cidades heroicas. As glorificações dessas
heroicidades permanecem ainda hoje no orgulho dos seus cidadãos, no
entanto, de um modo quase total, não se sabe mais as causas que
motivaram as guerras entre as nações vizinhas. Atualmente, a rua
principal de Jaguarão, por exemplo, tem o nome de “27 de janeiro”.
O dia é 27. O mês é janeiro. Mas se refere a qual ano? Fazendo-se
essa pergunta às pessoas na cidade, raras são os que respondem
“1865”. Isso reflete que o que sobrevive não é o conjunto
daquilo que existiu no passado, mas uma escolha de parcialidades. A
história contada hoje nas ruas de Jaguarão rejubila-se em falar que
sua população se defendeu e “correu os castelhanos” a
“pelegaços” e água quente. No outro lado do rio que demarca a
divisa entre o Brasil e o Uruguai, livros de história apresentam
outra versão sobre o mesmo episódio, enfocando que uma força
brasileira de mais de 500 homens foi derrotada, deixando em poder dos
blancos
uruguaios armas e cavalhadas e um estandarte imperial.
Dizem também
que, após sitiarem a cidade, retiraram-se por falta de armamento.
Os acontecimentos do
final de 1864, na cidade uruguaia de Paysandu, e de janeiro de 1865,
em Jaguarão, estão diretamente relacionados. No ano de 1864, o
caudilho uruguaio do partido colorado Venancio Flores sitia com seu
exército a cidade de Paysandu. O caudilho contou com o apoio do
presidente da Argentina, o general Bartolomé Mitre, e com a
cumplicidade do Império brasileiro, comprometido com interesses de
brasileiros que viviam nos campos uruguaios e que estavam ameaçados
de expulsão do Uruguai pelo governo dos blancos.
Dessa
forma, Venancio Flores pôde reunir ao seu lado 16.000 homens dos
exércitos de três nações para enfrentar cerca de 700 homens que
defendiam aquela cidade. A historiografia tradicional uruguaia
costuma colocar o cerco de Paysandu no plano da disputa entre
blancos
e colorados,
minimizando o componente dos interesses estrangeiros. No entanto,
para a historiografia tradicional brasileira, o mesmo acontecimento
faz parte do preâmbulo da Guerra do Paraguai, o que justifica a
intervenção do Império no território uruguaio. Se as
interpretações políticas avaliam o episódio em uma ou outra
conjuntura, o certo é que o fato representou consequências em
quaisquer dos contextos. O sítio a Paysandu durou de 2 dezembro de
1864 a 2 de janeiro do ano seguinte, até a cidade ser tomada pelos
colorados
que, depois, seguiram com seus aliados rumo a Montevidéu para ocupar
o poder. Procurando forçar os brasileiros a recuarem para defender
suas fronteiras, os blancos
do norte do Uruguai atacaram Jaguarão. Sem alcançar seus objetivos,
retiraram-se no dia seguinte, o famoso 27 de janeiro, dia em que a
população civil de Jaguarão expulsou os “castelhanos”.
A divergência dos discursos entre vencedores e vencidos sobre um mesmo fato do passado é explicada pelo pensador francês Paul Ricoeur, que fala da ficcionalização da história e da historicização da ficção através de um entrecruzamento de narrativas históricas e literárias. Enredando a invenção com os acontecimentos ocorridos nas duas cidades, os escritores Aldyr Garcia Schlee, brasileiro, e Mario Delgado Aparaín, uruguaio, rememoram os fatos para potencializar questionamentos e desmistificar glórias que recobrem o imaginário popular. Em No robarás las botas de los muertos, Delgado Aparaín dá identidade a personagens anônimos que participaram na defesa de Paysandu. Sua obra dialoga com La defensa de Paysandú, texto testemunhal do soldado Orlando Ribero, que é apontado como uma das melhores fontes sobre os acontecimentos do final de 1864 no Uruguai. No entanto, Ribero, ao mesmo tempo em que não esquece de enaltecer seus líderes e de se colocar como protagonista em muitas ações, deixa no anonimato seus companheiros, dando-lhes papel coadjuvante. No romance de Delgado Aparaín, por sua vez, uma personagem apenas mencionada por Ribero como um voluntário espanhol é nomeada e tem história: trata-se de Martín Zamora, que teria se incorporado na defesa da cidade não por um ideal, mas para salvar sua própria pele, uma vez que estaria condenado a fuzilamento por contrabando no momento em que Paysandu é sitiada por exércitos dos uruguaios colorados, do Brasil e da Argentina.
Diário do Rio de Janeiro, edição do dia 11 de fevereiro de 1865, publica carta do correspondente em Pelotas sobre os acontecimentos em Jaguarão - fonte Biblioteca Nacional |
A divergência dos discursos entre vencedores e vencidos sobre um mesmo fato do passado é explicada pelo pensador francês Paul Ricoeur, que fala da ficcionalização da história e da historicização da ficção através de um entrecruzamento de narrativas históricas e literárias. Enredando a invenção com os acontecimentos ocorridos nas duas cidades, os escritores Aldyr Garcia Schlee, brasileiro, e Mario Delgado Aparaín, uruguaio, rememoram os fatos para potencializar questionamentos e desmistificar glórias que recobrem o imaginário popular. Em No robarás las botas de los muertos, Delgado Aparaín dá identidade a personagens anônimos que participaram na defesa de Paysandu. Sua obra dialoga com La defensa de Paysandú, texto testemunhal do soldado Orlando Ribero, que é apontado como uma das melhores fontes sobre os acontecimentos do final de 1864 no Uruguai. No entanto, Ribero, ao mesmo tempo em que não esquece de enaltecer seus líderes e de se colocar como protagonista em muitas ações, deixa no anonimato seus companheiros, dando-lhes papel coadjuvante. No romance de Delgado Aparaín, por sua vez, uma personagem apenas mencionada por Ribero como um voluntário espanhol é nomeada e tem história: trata-se de Martín Zamora, que teria se incorporado na defesa da cidade não por um ideal, mas para salvar sua própria pele, uma vez que estaria condenado a fuzilamento por contrabando no momento em que Paysandu é sitiada por exércitos dos uruguaios colorados, do Brasil e da Argentina.
Inversamente, sem
pegar em armas, mas igualmente sem reconhecer apego à nação, a
personagem don Sejanes, que dá nome a um conto de Aldyr Garcia
Schlee, não se envolve na defesa de Jaguarão quando atacada pelos
blancos
uruguaios. Para ele, nascido na vizinha Melo, no lado uruguaio, e
batizado na paróquia de Jaguarão, não existiam motivos para o
enfrentamento entre brasileiros e uruguaios. Don Sejanes sequer
reconhecia essa divisão, pois tinha consciência que ele mesmo era
fruto de uma diversidade de povos: “sabia que era um pouco índio e
espanhol e português, mas que era mais oriental e brasileiro, se
tivesse que ser algo além de ser gaúcho como queria e gostava”,
descreve o narrador. Vivendo no trânsito de um a outro lado do rio
Jaguarão, don Sejanes não reconhece a separação estabelecida por
aqueles que se julgam donos das terras. Assim, não vê motivos para
defender um território que, no seu entender, não pertencia a
ninguém e que deveria ser compartilhado entre os que nele vivessem.
Apresentando
considerações mais amplas, o romance No
robarás las botas de los muertos
e o conto “Don Sejanes” desestabilizam os motivos que sustentam o
orgulho afirmado em Paysandu e em Jaguarão. Na obra do autor
uruguaio, denuncia-se a formação de uma aliança entre os colorados
uruguaios,
a Argentina e o Império brasileiro para derrubar um governo
constituído legalmente. Contrariamente à glorificação de
personagens famosas que lutaram na defesa da cidade que textos
canônicos, históricos ou literários, manifestam, Delgado Aparaín
oferece uma trama que envolve espaços que vão para além do
território uruguaio, onde os combatentes, com a defesa da cidade
sitiada, estavam resistindo à destruição de valores universais. O
conto de Schlee também não se restringe a um único fato histórico
e, retratando a invasão uruguaia à Jaguarão, coloca vários outros
questionamentos em pauta, desmistificando a bravura da defesa da
cidade. Tomados isoladamente, os acontecimentos em Paysandu e em
Jaguarão reforçam a construção de glórias e heroicidades.
Elevadas a “cidades heroicas”, constituem versões únicas dos
fatos, não considerando as diferenças e a diversidade da complexa
conjuntura das nações no século XIX. Existem razões para
valorizar Jaguarão como heroica se habitantes seus constituíam o
exército brasileiro que, covardemente, sitiou e atacou Paysandu?
Existem razões para considerar Paysandu heroica se seus
correligionários atacaram covardemente a população de Jaguarão?
Carlos Rizzon
Professor do Curso de Letras da Unipampa - Jaguarão
Texto publicado na coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional do dia 07/11/2012
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