Já não se escrevem mais cartas!! Sim, a boa e velha carta é uma espécie em extinção. Isto leva a pensar nos motivos desta morte anunciada. Podemos encontrar dois “vilões” nesta trama: a telefonia e a internet. Os telefones se espalham como um vírus, fulminando as velhas cartinhas. Cada vez mais o aparelho eletrônico que agora anda agarrado nas cinturas, ou dentro das bolsas femininas, está impedindo que as pessoas exponham seus sentimentos, idéias e opiniões, de outra forma que não seja o blá blá blá oral. E agora, por um punhado a mais de trocados, pode-se falar a longas distâncias. Já a rede mundial de computadores, vulgo internet, trouxe consigo o correio eletrônico, vulgo email. Com eles as pessoas até escrevem, mas de forma “virtual”, com letras bonitas e legíveis que piscam em telas retangulares. Até as identidades estão sendo afetadas. Agora nos chamamos fulano@qualquercoisa, e é assim que somos identificados antes que a outra pessoa possa ler nosso verdadeiro nome digitado, em lugar de uma assinatura. Na esteira deste crime mundial, até mesmo os cartões postais estão sendo atingidos. Agora, com aquelas flechas na tela podemos enviar lindas imagens, com frases prontas, para expressar nossa felicidade de haver estado em um lugar. E isto as vezes sem sair de casa.
Mas e as cartas? O que há com elas? Quem irá contar sua triste história no futuro? E isto leva a uma pergunta banal. Para nós. Não para as Cartas. Onde começa a vida de uma carta? Que trajetórias percorre? Pode-se dizer que a carta começa a nascer ainda no tronco de uma árvore qualquer. Dali sai o papel que será ao mesmo tempo base e objeto da carta. Então cria-se a situação apropriada para que este papel seja preenchido com uma mensagem. Pode ser uma viagem, uma mudança de cidade, uma paixão, uma separação, um aviso de emprego, uma demissão, enfim, motivos sobram. O fato é que a carta escrita a mão extrapola seu próprio conteúdo. Fiquemos aqui apenas com aquelas mais tradicionais, enviadas de uma pessoa a outra.
Ela inicia com o desejo, a saudade, a necessidade de enviar uma notícia. Como veremos, este conteúdo determinará o destino final desta carta. Então o autor apanha a folha em branco. Com sua própria letra, linda como as das meninas do primário, ou garranchos como os dos meninos, não importa. O que importa é o fato de que a calegrafia é um pouco do sujeito que escreve. Alguns escrevem cartas curtas, outros, mais prolixos, ou muito apaixonados, escrevem longos tratados. Em alguns casos, as cartas se fazem acompanhar de pequenos desenhos, uma gota de perfume, notas de dinheiro ou cachos de cabelos, dependendo do fim à que se destinam. O próximo passo é a escolha do envelope. Este cumpre o nobre papel de ser fiel depositário de nossas palavras. Lembram daqueles envelopes pequenos, com uma banda verde e amarela nas extremidades e uma quadradinho escrito “par avion”? Com o tempo foram substituídos por simples envelopes brancos, apenas preenchidos a mão, sem firulas. Pois bem. Aqui começa a trajetória da carta. O autor sai de sua casa. Caminha até uma papelaria. Compra o envelope e deposita em seu interior o papel dobrado. Havia um prazer especial em lamber a parte de envelope que servia de “lacre” inviolável de nossos segredos. O próximo passo é a busca por um selo. Até algum tempo atrás, não era preciso ir muito longe. Qualquer armazén, tabacaria ou banca de revistas dispunha de uma coleção inteira. Podia-se até escolher um selo com uma imagem especial, as vezes até mais apropriada para a mensagem. Hoje, em muitos casos, apenas as lojas dos correios oferecem tal leque de opções. Mesmo assim, a busca pelo selo obriga o autor a dar uma caminhada. Nem que seja pelo seu bairro. Isto, além de saudável, permite a casualidade de topar com um vizinho, falar sobre o tempo, perguntar sobre os filhos ou sobre aquela doença da vovó do amigo. Não se surpreenda se ele estranhar quando você disser: “Estou indo comprar um selo para uma carta”.
Já com o selo colado no canto superior direito do envelope, chega o momento de depositar em uma caixa de correio. Lembro-me que em cada bairro havia várias daquelas caixinhas amarelas, quase sempre ao lado dos velhos “orelhões” da telefônica. Hoje há que se caminhar um pouco para topar com uma. Ao depositar a carta na caixa, éramos tomados de uma expectativa crescente. Será que irá demorar muito para chegar lá? Neste instante nem imaginávamos o percurso que nosso carta iria fazer. No final da tarde, uma kombi amarela dos correios chegava. Dela descia um funcionário com uma sacola de lona azul. Abria a caixa e recolhia todos os envelopes de seu interior. Ali, perdida entre várias outras, estava a nossa carta. Era levada para central de correios, onde funcionários faziam uma primeira separação de material. E lá ia a cartinha de mão em mão, até chegar ao local onde aguardaria por seu destino. Em alguns casos, as cartas fazem longos trajetos. Chegam mesmo a viajar de avião ou navio. Coisa que muitas vezes, nem o autor ou o destinatário fizeram.
Quando a carta chega nos correios do destino, um carteiro recebe a incumbência de conduzi-la até o endereço escrito no envelope. Nos bons tempos das cartas, as pessoas costumavam esperar pelo carteiro, que enfrentando chuva, sol e, principalmente, cães, poderiam trazer alguma novidade. Hoje, os afortunados da era dos computadores sentem algo ligeiramente parecido enquanto esperam par acessar sua página de “email”. Mas provavelmente não se compara àquela expectativa de ver o carteiro chegando. Também não imaginamos as mirabolantes estratégias que os carteiros criam para conseguir entregar todas as cartas que lhe cabem em um mesmo dia.
Então a carta chega até a porta do destinatário. Normalmente, os carteiros a deixam no local indicado pelo morador. No caso dos edifícios, o que eles encontram são aquelas caixas enormes, com inúmeras portinhas, cada qual correspondendo à um apartamento. Deixam as cartas e vão embora. Mas em alguns casos, ainda conseguem conversar com o destinatário. Falam sobre o tempo, pedem um copo d’água, enfim, ocorre um fugaz contato entre aquele que recebe e aquele que transporta as mensagens. No Natal, eles até costumam propor uma “caixinha” com os moradores da rua, para ajudar o orçamento de final de ano.
Aqui chegamos ao clímax da vida de uma carta. O mágico momento, tão esperado tanto por quem envia, como por quem recebe. O momento da abertura e leitura da mesma. Vamos supor que aquele que recebeu a carta, ao identificar o remetente, e constatar que trata-se de um desafeto, imediatamente a joga no lixo. Não terá idéia de que está matando não apenas a possibilidade de ler um sincero pedido de desculpas, mas também a própria carta, que privada de ser lida, perde todo o sentido de sua existência. Por sorte, acredito, ainda serão poucos aqueles capazes de tal ato. Nem que seja por mórbida curiosidade, mas sempre abrimos as cartas.
Pensemos agora no último ato da existência de uma carta. Isto dependerá de seu conteúdo. Vejamos alguns exemplos. Uma carta de um filho que está distante, para sua mãe, será lida com entusiasmo. E entre lágrimas e sorrisos, ela a guardará na gaveta de seu criado mudo. Uma carta cuja mensagem indica o fim de um relacionamento, será amassada, rasgada e, em alguns casos, até queimada. Apenas alguns mais masoquistas a guardarão para relê-la quando a saudade apertar. Já uma linda carta de amor, cada vez mais rara, será lida, relida, relida, relida, infinitas vezes. Talvez nenhum outro tipo de carta seja tão completo quanto este. Pois mesmo seu destino final sempre será nobre. Ficam guardadas em caixas especiais, entre as roupas, dentro de livros, mas sempre a mão, para que o destinatário possa ter acesso, sempre que quiser relembrar para si mesmo, o quanto é ou foi amado. Enfim, enquanto existirem as cartas de amor, e elas continuarem sendo guardadas com o mesmo carinho que foram escritas, haverá esperança para as cartas em geral.
Apenas um comentário a mais: outro dia um carteiro confessou-me que, hoje em dia, 60 % das cartas são propagandas e panfletos; uns 35 % correspondem à cobranças; e apenas 05% são cartas propriamente ditas. Estes dados confirmam o que venho dizendo. As cartas estão morrendo!!! Então guarde este mensagem, apanhe um papel qualquer e escreva agora mesmo, de seu próprio punho, uma carta para alguém que você quer muito; ou para pedir desculpas; ou para contar uma novidade, ou apenas para dizer um olá, não importa, apenas dê vida a mais uma carta. Do jeito que as coisas vão, a sua pode ser a última. Mas na melhor das hipóteses, o destinatário vai lhe responder. E Então as cartas sairão da lista de extinção. E não me critique por estar usando um email para falar sobre isto. As armas do inimigo serão as minhas na luta pela sobrevivência das cartas!
Artur Barcelos
(Professor do Curso de Arqueologia da FURG)
Um comentário:
Quem sabe daqui a uns anos não surgirá a Arqueologia Virtual? Focada em recuperar e-mails, blogs e descobrir como nós "vivívamos".
Um Abraço
Postar um comentário