
Isso
tem ocorrido na minha vida e com bastante frequência. Como o público
sai depois de uma palestra dessas eu não sei, quanto a mim, saio
suando, com vontade de morrer, mas sem coragem para o ato final.
Uma
dessas ocasiões me deixou marcado. Bastante gente na plateia, para
glória e honra dos promotores e angústia do palestrante, que, com
cara de pateta, olhava de um lado para o outro tentando descobrir
qual o padrão de linguagem a ser empregado. Apresentações e
agradecimentos, lá estava eu de microfone na mão ainda enrolando
com alguma graça para conquistar o público, até que não deu mais
para segurar e o assunto foi enfrentado.
A
certa altura, ocorreu a lembrança de que alguns exemplos sempre
ajudam, pois dão concretude a conceitos por vezes não familiares.
Por isso, chamei a atenção da plateia para o que faria: dois
enunciados diferentes. Então parodiei um poema:
Uma
mulher declara que nem se deu conta da passagem do tempo, e está
perplexa por não se reconhecer por causa das mudanças.
Em
seguida li, da Cecília Meireles, Retrato, que muitas vezes carrego
comigo:
Eu
não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste, assim
magro, / nem estes olhos tão vazios, / nem o lábio amargo.
Eu
não tinha estas mãos sem força, / tão paradas e frias e mortas; / eu
não tinha este coração / que nem se mostra.
Eu
não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil: /–
Em que espelho ficou perdida / a minha face?
Em
seguida, a pergunta que me pareceu óbvia:
-
Qual dos dois textos vocês preferem?
Houve
um movimento de pessoas se remexendo nas cadeiras, alguns cochichos e
nada mais. A plateia parecia me ignorar, um pouco incomodada com o
assunto.
Mas
eis que se levanta uma mulher, ergue o braço e me pergunta se pode
responder com toda sinceridade. Respondi que não era outra coisa o
que eu queria, já contando com o sucesso da minha tática. Tive a
impressão de que todo o público olhou para ela numa muda
solidariedade.
-
Pois eu, ela disse, prefiro o primeiro, porque do segundo não
entendi coisa nenhuma. O primeiro é mais claro, mais simples, a
gente entende.
Bom,
nessa noite o acaso me salvou. O que falei sobre o caso já nem me
lembro mais, mas parece que fui até o fim. Com os braços e pernas
dormentes, sentindo algumas dezenas de graus de febre, dor de
estômago e vontade de sair voando, mas devo ter ido até o fim. O
acaso que me salvou de pôr um fim a minha vida foi a chegada de um
amigo com quem tive de jantar e brindar nosso encontro, e continuar
brindando até tarde da noite. Muito tarde.
Hoje,
salvo pelo acaso, levo em conta duas considerações: A mulher, do
primeiro texto, não existia, era uma invenção minha. Portanto, a
informação não informava nada, apesar da simplicidade e da
linguagem comum, pragmática, que é esta linguagem que se usa a toda
hora para nossa troca de informações com os semelhantes. Não
é isso que se busca na literatura. O primeiro texto está escrito em
linguagem social, comum a todos, sem nada de original, sem marca
nenhuma de autoria. O segundo texto explora toda a virtualidade das
palavras: a sonoridade, as combinações inusitadas, a interação
entre elas que as potencializa. O segundo texto, por seus arranjos e
combinações, pelo eco, pela delicadeza no modo de falar de
sentimentos mais concretos, por tudo isso, é um texto que não serve
para informar, mas para encantar. Importa saber se a Cecília
Meireles era jovem ou velha quando escreveu o poema? Claro que não.
Ela universalizou uma experiência humana que não necessariamente
era a sua.
Enterrados
em sua circunstância material, nem todos se encantam com a beleza.
Menalton Braff
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