Jaguarão, no extremo sul do país, encabeça investimentos de mais de R$ 6
milhões do Iphan via Ministério da Cultura como proposta de revitalização
econômica a partir do patrimônio histórico da fronteira
Felipe Sáles
Casas
históricas bem preservadas em Jaguarão.Fotos: Felipe Sáles
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“A ‘Ouro Preto’ do Sul” é como o jornalista e historiador Eduardo Souza
Soares gosta de definir sua terra natal, Jaguarão, cidade do Rio Grande do Sul
que faz fronteira com o Uruguai. Nada, porém, que remeta às formas barrocas da
cidade mineira.
Em Jaguarão prevalece uma arquitetura tão eclética quanto
vasta, com direito a um inventário de mais de 700 construções tombadas como
patrimônio nacional, sem contar a Ponte Internacional Barão de Mauá, primeiro
monumento binacional tombado. A comparação, no caso, remete à abrangência da
preservação e à esperança de revitalização econômica da região a partir do
patrimônio histórico, que vem sendo reformado com o aporte de mais de R$ 6
milhões do governo federal. Não à toa, o Iphan pretende instalar por lá um
escritório técnico, a fim de cuidar da preservação de Jaguarão e de outras
quatro cidades do sul gaúcho.
Para chegar até lá, se avança por 390 quilômetros desde Porto Alegre,
atravessando uma paisagem sem fim de pradarias, pampas e bosques. Jaguarão se
anuncia como uma cidadezinha ainda no século XIX: casas multicoloridas com no
máximo três andares. O único sinal de trânsito das ruas, além de ponto de
referência, define a calmaria predominante de uma região de rica história. Lá,
o orgulho gaúcho toma proporções ainda maiores, baseado numa história recheada
de lembranças heroicas.
E Jaguarão defende
o Brasil
Igreja Matriz do Divino Espírito Santo: à frente, o mastro que delimitava
manobras militares;
ao fundo, o Rio Jaguarão e a cidade de Rio Branco, no
Uruguai
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Nem poderia ser diferente em se tratando de uma das cidades mais antigas do
Rio Grande do Sul, que nasceu e cresceu como acampamento militar. Em 1801, a
guerra entre Portugal e Espanha mudou o destino da região. Por ordem de D. João
VI, o general Manoel Marques de Souza deslocou seus soldados para expulsar os
espanhóis que já tomavam a margem norte do Rio Jaguarão. Os militares ficaram
por lá junto a uma pequena comunidade rural que, em 1812, deu origem à
Freguesia de Serrito. Vinte anos depois, seria elevada a vila, já com o nome de
Jaguarão e a primeira Câmara de Vereadores.
Em 1865, uma cavalaria uruguaia de 1.500 homens tentou invadir as terras
brasileiras, mas foram duramente repelidas pelo povo de Jaguarão. O episódio
ficou conhecido como Batalha do Jaguarão e reforçou ainda mais o ímpeto militar
da região – algo que se reflete até hoje na arquitetura da cidade.
A história da
fronteira contada pela arquitetura
que será transformada em
centro cultural e de pesquisa do pampa
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Um exemplo é a Igreja Matriz do Divino Espírito Santo, de estilo
barroco, erguida em 1875 com altares de madeira esculpidos à mão. Na praça em
frente ao templo há um insuspeito mastro que, na verdade, foi colocado para
definir as margens de manobras dos veículos militares. Sem contar a antiga Enfermaria
Militar, de estilo neoclássico, que fica na região conhecida como Cerro da
Pólvora – onde se descortina uma vista panorâmica da cidade. Construída em 1880
para atender a oficiais e praças do exército local, acabou sendo utilizada como
prisão política na ditadura militar. O local está sendo restaurado para se
tornar o futuro Centro de Interpretação do Pampa da Universidade Federal do
Pampa, também sediada lá. A ideia é que o espaço seja um centro de cultura e um
local de pesquisa e extensão universitária, tendo por base o estudo da história
de vida na fronteira.
Jaguarão guarda ainda outras preciosidades como o Teatro Esperança,
também em estilo neoclássico, fundado em 1897 e que só parou de funcionar há
cerca de um ano, por conta das obras de revitalização. O espaço, todo feito em
madeira, é considerado o terceiro melhor do país em acústica e, no início do
século passado, sediou até touradas graças a uma engenharia que permitia os
animais passarem por debaixo do palco.
Ponte Mauá, primeiro monumento binacional tombado. Foto:
divulgação
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A Ponte Internacional Barão de
Mauá, oficialmente tombada como o primeiro patrimônio cultural do Mercosul – e
também alvo de reformas –, possui nove arcos que se duplicam no reflexo do rio
e são adornados por uma bela vista do pôr-do-sol. Do lado de lá, onde
se chega após cinco minutos de caminhada, há ainda o Balneário da Lagoa Mirim,
um paraíso ecológico em meio a cassinos e lojas do sistema free shop.
Resumindo: nas palavras do desenhista e escritor Aldyr Garcia Schlee, natural
de Jaguarão e criador da camisa canarinho da Seleção Brasileira, "os
habitantes vão ao exterior sem sair do interior".
A ponte foi inaugurada em 1930 por conta de uma dívida do Uruguai. Isso
porque D. Pedro II concedeu vários empréstimos ao país vizinho, cuja recém
emancipação era ameaçada pelo general argentino Juan Manuel de Rosas. O Uruguai
salvou-se, mas, em compensação, devia cinco milhões de pesos em 1919 – dívida,
então, transformada em ponte. Assim como este, vários outros monumentos estão
em estudo pelo Iphan para comporem um conjunto arquitetônico do Mercosul.
Jardim da casa de Carlos Barbosa
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Destacam-se também o Mercado Público Municipal, que a prefeitura
pretende transformar num centro turístico-comercial de vista privilegiada, às
margens do rio Jaguarão, próximo à ponte. Sem contar o Museu Carlos
Barbosa, na casa do ex-presidente da Província erguida em 1896 – programa
imperdível para quem quer, definitivamente, embarcar num túnel do tempo. A
impressão é de que os moradores acabaram de deixar a residência. Talheres,
roupas, brinquedos, bijuterias, tudo está intacto à disposição dos visitantes.
Há, por exemplo, uma banheira de mármore com irônicas alças de caixão – já que,
na época, achava-se que tomar banho prejudicava a saúde – e um lustre cujas
lâmpadas, reza a lenda, funcionam desde o início do século XX.
Autoestima da fronteira
Na última semana, o presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, e a
ministra da Cultura, Ana de Hollanda, estiveram na região visitando as obras de
restauração. A expectativa é de que as reformas sejam concluídas até 2013. A
ministra caminhou pela cidade, visitou os principais patrimônios e mostrou-se
encantada com o orgulho da população pela história da região.
“A cultura tem a capacidade da transversalidade com outras áreas e também
entre fronteiras, pois dialoga com os valores do cidadão, com sua história e
memória. Temos de preservar, reconhecer e incentivar a diversidade cultural”,
comentou.
No detalhe, a balança da família Barbosa Gonçalves
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O prefeito de Jaguarão, Cláudio Martins, explicou que a valorização do
patrimônio é uma aposta na recuperação econômica da cidade.
“Não temos perspectiva de crescimento a não ser no turismo. O último censo
mostrou que perdemos mais de 15% da população, justamente porque os jovens aqui
não têm qualquer perspectiva. Daí a importância de valorizar a história do
pampa, da fronteira, como fortalecimento da nossa identidade e atrativo
turístico”, argumenta.
O presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, aposta na valorização do
patrimônio como resgate econômico da região – além, principalmente, de melhorar
a autoestima da população.
“Em Minas Gerais, com a derrocada econômica após o encerramento do ciclo do
ouro, várias cidades do interior só se revitalizaram a partir do turismo
histórico. E a região do extremo sul gaúcho tem um enorme potencial para ser
explorado, que esperamos ajudar com a reforma dos monumentos após décadas de
abandono”, lembra.
Circuito histórico da fronteira
Caixa d'Água de Pelotas: uma das quatro do mundo e única
ainda em funcionamento
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Daí a importância do projeto de montar um escritório técnico do Iphan em
Jaguarão, atualmente tramitando no Ministério do Planejamento. O setor ficaria
responsável ainda por Piratini, Rio Grande, Magé e Pelotas – mais uma cidade
visitada pela comitiva na semana passada.
Os pelotenses comemoraram a reinauguração da Caixa d’Água da Praça
Piratinino de Almeida, um conhecido ponto de abandono da cidade. A Caixa d’Água
foi importada da França em 1870 e, até 2009, ainda fornecia água para a área
central da cidade. O reservatório, com capacidade para armazenar 1,5 milhão de
litros de água, pesa cerca de 300 toneladas. É um dos mais importantes
exemplares da arquitetura em ferro no Brasil e, como este, há apenas outros
três no mundo. A reforma, toda bancada pelo Iphan, custou R$ 2,3 milhões e vem
sendo feita desde 2009.
A Casa Oito, em Pelotas, passa por restauração minuciosa
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Só falta, porém, a contrapartida da
Prefeitura de Pelotas, que desde o início da obra ficou responsável pelo
projeto paisagístico e de reforma da praça, o que até hoje não aconteceu. O prefeito Adolfo
Fetter Júnior argumentou que as máquinas que trabalhavam na reforma da Caixa
d’Água impediam a realização do projeto, mas que tudo será feito a partir de
agora.
“Vamos enviar o projeto ao Iphan, que precisa antes aprovar o que vamos
fazer na praça. Não adiantava fazermos nada antes para não atrapalhar a reforma
da Caixa d’Água”, justificou o prefeito.
Em Pelotas, a comitiva esteve também na Casa Oito, o casarão mais antigo e
refinado da cidade que vai sediar o Museu do Doce e o Museu da Arqueologia,
além de cinema, auditório e outros espaços. O local será mantido pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Na restauração trabalham técnicos que
repassam o conhecimento para os 200 operários envolvidos.
“É uma forma de qualificar e capacitar a mão-de-obra dentro do trabalho de
restauro, exemplo de como o patrimônio pode gerar emprego e renda”, explica
Luiz Fernando de Almeida.
Fonte: revistadehistoria.com.br
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