Dona
Sabina era benzedeira. “Tia-velha” benzedeira, como se diz aqui
na fronteira. De corpo franzino, bem pretinha e pequenininha, mas com
alma imensa! Sua idade? ninguém sabia. Na “tia” Sabina, o tempo
havia parado. Dizem que falava com os passarinhos. Fumava palheiro
e bebia suas cachacinhas. Benzia tudo: espinhela caída, dor de
amor, asma, mau-olhado e temporal (e isso só para ficarmos “no
varejo!”).
Suas
rezas levantavam cavalo velho, desviavam temporais de Santa Rosa,
curavam homem já com “aquilo” roto, e afastavam nuvens de
gafanhoto – que, na época de sua juventude, eram frequentes.
Morava
numa casinha bem humilde, mas muito limpinha, cheia de flores, na
avenida beira rio.
Tinha
um carinho todo especial por mim. “Meu filho - dizia - ‘ocê’
vai dar muito trabalho!!! Ah, se vai!!” Depois, mandava eu me
virar de frente para o rio Jaguarão e, pegando qualquer “jujo”
do seu vasto jardim de ervas medicinais, fazia uma benzedura pra me
proteger de todo mal: “São Jorge/monte maior/ guardai as costas e
tudo a redor/de bruxo ou feiticeiro/ em nome de Deus e da Virgem
Maria/ Amém, Jesus!”
Dona
Sabina me contou como surgiu o nome do local do rio Jaguarão - a
Volta do Negro Morto.
Numa
das curvas que o rio dá, antes de se abraçar com a Laguna Mirim,
existe um local muito fundo - mais de dez metros. É a Volta, ou
curva (ou geograficamente: o meandro) do Negro Morto.
Ela
contava a estória medindo as palavras, entre uma baforada e outra do
crioulo. Os bracinhos escuros e frágeis da velha gesticulavam, dando
uma ênfase maior ao “causo”.
Falava
que, naqueles tempos, quando ainda existia o cativeiro no Brasil,
muitos negros tentavam escapar-se para o Uruguai - país de onde a
chaga da escravidão já havia sido extirpada.
Um
escravo, do qual ela não mais lembrava o nome, tentou buscar a
liberdade exatamente naquela curva do rio.
Seu
senhor, juntando-se a uns agregados, partiu em busca do
fujão.
Vendo-se perdido, o cativo tomou a decisão: liberdade ou morte! E atirou-se às águas do Jaguarão. Era um homem forte, nadava vigorosamente. As cargas, sinistras, sibilavam à sua volta...
Infelizmente,
a liberdade cobrou seu preço: estava do outro lado, porém com
várias balas no corpo.
Debaixo
de um grande salso, na areia quente e com o zumbido das mutucas,
agonizou por horas. Seu organismo perfurado ficou ali, virando
repasto para feras e abutres.
Hoje,
poucas pessoas se aventuram a pescar naquele local, pois dizem que o
tal escravo, o “nego morto” - que ficou insepulto - aparece
em noites de lua cheia ,pedindo para que lhe deem uma sepultura
cristã.
Hélio Ramirez
Conto que faz parte do Livro bilíngue "Lendas do Rio Jaguarão" ( tradução para o espanhol do Professor Juan) do escritor, músico, biólogo, Hélio Ramirez.
Google Maps. Mapa do Rio Jaguarão. A seta indica a Volta do Negro Morto |
Um comentário:
Boa história!! Liberdade ainda que tardia...
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