quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A encomenda – um conto eleitoral

Por Raúl Boeira - compositor
Um velho amigo desviou-se do caminho do bem e entrou na política. Agora é candidato. Apesar de profundamente decepcionado com seu gesto, continuo sendo seu amigo, o que não quer necessariamente dizer que eu venha a me tornar seu eleitor. Na condição de amigo, o melhor a fazer seria convencê-lo a ficar longe dos cargos e dos palácios, porém o homem está decidido. Fazer o quê?

Mas a encrenca mesmo começou quando o amigo candidato (ou seria candidato amigo?) pediu pra eu criar um jingle pra sua campanha. Antes que eu pudesse alegar falta de tempo ou outra desculpa que me livrasse do encargo, já foi me entulhando com santinhos, currículo, propostas, cartilha do partido, elementos centrais do jingle, palavras-chave, slogan e, naturalmente, alguns infalíveis adesivos com espontâneos sorrisos ensaiados. Perguntei se tinha preferência por algum ritmo e ele, com aquela cara esperançosa e determinada de candidato profissional, tascou um “confio no amigo”, apertou minha mão com força, deu-me o indefectível tapinha nas costas e, escudado pelo coordenador da campanha, arremessou-se em direção a um grupo que se aproximava.

Na noite seguinte resolvi enfrentar o monstro. Cheio de coragem e boa-vontade, espalhei o “material” sobre a escrivaninha, peguei lápis, papel, e, naturalmente, uma garrafa. Naquela hora, que eu já previa dolorosa, só mesmo um vinhozinho tinto pra empurrar o amargo caroço goela abaixo e dar uma mãozinha pra inspiração. A primeira garrafa se foi antes que eu pudesse encontrar naquela papelada uma só palavra com um mínimo de originalidade ou um mote capaz de impulsionar minha veia poético-musical. Que nada! O que eu tinha ali era uma avalanche de lugares-comuns, frases feitas, chavões esclerosados, lista de pseudobenfeitorias, além de uma carrada de mentiras.

Abri a segunda garrafa e fui pro Google em busca da fórmula mágica. Visitei algumas agências de publicidade especializadas em jingles políticos, mas, como era de se esperar, nenhuma delas entregava a rapadura, o “como fazer”. Decidi aprofundar minhas pesquisas. Na terceira garrafa eu já estava sabendo que a primeira peça do gênero apareceu na campanha presidencial do Marechal Hermes da Fonseca, em 1914. O jingle virou sucesso no carnaval, mas o eleito acabou sendo o candidato oficial, Wenceslau Braz, com quase 90% dos votos. Outra: o presidente Artur Bernardes não hesitava em mandar para a cadeia quem ousasse ironizá-lo com quadrinhas musicais, como aconteceu com o escritor mineiro Djalma Andrade, autor do jingle que fazia insinuações sobre a sexualidade do presidente: ‘Quando à cova ele desceu / Inteiramente despido / Disse um verme para outro verme: / Não como, já foi comido’.

Mas a bagagem cultural que eu adquirira naqueles breves instantes de navegação não estava me ajudando a resolver a parada. Descobri que não tinha mais vinho em casa e chamei o tele-vinho. Desliguei o celular e divaguei: e se existisse um tele-jingle... era só discar, escolher e pedir... ritmo, letra, melodia... forró com pimenta, sem pimenta... sertanejo ao molho pardo... tudo quentinho dentro de uma caixa de papelão. Mas o TSE não autorizou a invenção e eu continuava ali, me achando um tremendo incompetente. Foi quando pensei: porra, se o Chico Buarque (que eu modestamente tento imitar há quase quarentta anos) compôs uma marchinha para o FHC quando este disputava uma cadeira no Senado, em 1978, e não morreu de remorso, eu também posso fazer um jingle pro amigo sem me sentir um mentiroso culpado pro resto da vida. Pura ilusão. Nem assim. A folha do bloco permaneceu branca e o violão calado até o último gole. Perdi uma noite de sono, mas descobri que, ao menos em música, não sei mentir.

Na manhã seguinte, com as pestanas cheias de areia e vinho, liguei pro amigo pra me desculpar e dizer que jamais conseguiria entregar a encomenda. Com a magnanimidade de um velho parlamentar bem sucedido, disse que não tinha galho e pediu pra eu indicar alguém que pudesse abraçar a bronca. Dei-lhe o telefone do Mandrake.

.com

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