O rio tinha dois quilômetros de largura e estávamos a quinhentos metros de uma das margens. Nadar, eu nadava, mas, quinhentos metros? Era a época das cheias, a correnteza muito forte, troncos enormes e galhos descendo rio abaixo. Em quinze dias, dois troncos chamaram a atenção: dois troncos humanos, inchados e em decomposição. No meu primeiro dia de trabalho, o primeiro. No dia de meu aniversário, o segundo. Junho é mês de cheia na Amazônia, é mês em que troncos descem rio abaixo.
Balsas e dragas eram utilizadas no garimpo do ouro. As balsas eram pequenas embarcações que precisavam ser amarradas umas às outras a fim de viabilizar o trabalho. Onde o metal era abundante, formava-se uma verdadeira cidade flutuante. Entre ela e o rio estabeleciam-se fluxos incessantes de dejetos e ouro. Vez por outra, sangue subia no lugar de ouro, sangue de mergulhador. Na cidade flutuante, a divisão do resultado de árduo trabalho freqüentemente fazia inverter o sentido do fluxo de sangue.
As dragas eram autônomas. Nada de mergulhadores, nada de cidades flutuantes. Eram dotadas de um mecanismo hidráulico que substituía os mergulhadores na coleta de material no fundo do rio. Presas em uma das extremidades por uma âncora e em constante contato com o solo na outra, através de um robusto cano de ferro que sugava o material, as dragas descreviam um movimento pendular que não admitia qualquer tipo de vizinhança.
Éramos três os operadores da draga. Raimundo e Silvério, cunhados, nativos da região, acostumados aos galhos e troncos rio abaixo, deparavam-se agora com uma novidade. Tradicionalmente os operadores sempre foram da região, mas por uma mudança na política de administração do negócio, os proprietários resolveram introduzir alguém de fora, alguém do sul, como eles.
Para a dupla eu era “brabo” na operação da draga e eles eram “mansos”. Não gostavam muito de conversar comigo. Em meu primeiro dia e em meu aniversário o sorriso dos dois me impressionou a ponto de perder o sono por duas noites. Somadas, quatro. Quatro horas para cada um na operação da draga, lado a lado com um motor de caminhão Mercedes ou Scania, não lembro bem. No auge do calor amazônico, acrescido da temperatura do motor, tive momentos de profunda angústia. Voltar para casa era impossível; havia o contrato, mas o que mais determinava a minha presença naquele lugar era o poder dos sorrisos.
Dormíamos em um triliche apertado em um quartinho pouco maior do que as camas. A minha era a última. Logo abaixo de mim, Raimundo. Raimundo e Silvério costumavam interromper a conversa que mantinham quando eu me aproximava. Guardavam prolongado silêncio até que eu me afastasse. Comecei a fumar. Os cigarros me deixavam tonto, de início, mas, com o passar dos dias, tonto eu ficava sem eles.
Vivíamos uma temporada fraca no garimpo. A cada três ou quatro dias de trabalho promovíamos uma “despescada”. Depois de horas batendo os carpetes ao chão, de onde ouro, terra e outras impurezas eram retirados, utilizávamos o azougue para agrupar o metal precioso. Bastava queimar em um cadinho aquela bola cor de prata por alguns minutos e tínhamos em mãos cerca de duzentos gramas de ouro. Era pouco. Em temporadas passadas, contavam, era comum despescadas de quatrocentos, seiscentos gramas. A cada operador cabia cinco por cento do resultado.
Em meados de julho eu continuava “brabo” e eles “mansos”. No entanto, sentia que minhas habilidades no manejo de alavancas, cabos, brocas, melhorara, minha confiança aumentava a cada dia. Mas cometi um erro. Ao içar o cano para retirar algumas pedras que obstruíam a passagem de material, não percebi – era noite – que o cano já encostara em uma das longarinas que davam sustentação à embarcação. O estrondo foi medonho, a draga inclinou-se rapidamente. Uma mão nervosa, mas decidida, surgiu de repente a minha frente e manejou com habilidade as alavancas, cessando o movimento do cano. O silêncio que se seguiu me era insuportável. Ficaríamos dias parados por conta dos reparos a serem feitos.
Naquela noite resolvi não dormir no quarto. Uma rede ficava estendida estrategicamente à frente da porta de acesso ao quarto e ali permaneci insone, fumando. Após trinta minutos ouvi um barulho, barulho de gente pulando do segundo andar do triliche. Imediatamente ergui-me na rede, assumindo a posição de sentado. Meu coração parecia denunciar minha presença na escuridão. Ao pensar nisso, joguei o cigarro no rio. Raimundo saiu do quarto com um facão em punho, dirigindo-se a mim, e , três passos após, dobrou à esquerda velozmente, agachou-se e abriu o baú das ferramentas. Não pude ver o objeto que pegara, mas vi que não largara o facão. Entrou no quarto e reinou o silêncio.
Na manhã seguinte, sem se importar com a minha presença, Raimundo contava a Silvério que tivera um pesadelo. Ao acordar, assustado, utilizando-se do facão e de uma chave de boca número quarenta, armou uma cruz em baixo das camas e dormiu profundamente. Sobre as águas de um rio na Amazônia sentei aliviado à beira da embarcação e mergulhei meus pés nas águas turvas. Relaxei. Estiquei o olhar e apreciei a revoada dos pássaros. Ao fundo, percebi algo diferente, cinco pontos no horizonte. Após alguns minutos, os pontos foram ganhando nitidez, forma, movimento. Cinco dragas vinham em nossa direção. Fumei meu último cigarro.
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