Eu
não procurei este livro para comprar, eu cruzei com ele. Estava
caminhando por uma livraria e dei de cara com o volume da Martins
Fontes. Estranho, não era um DVD do filme, mas um livro de mais de
300 páginas escrito pelo próprio diretor e roteirista Andrei
Tarkovski. Comprei imediatamente e não é que o tenha lido, eu o
engoli imediatamente com os olhos.
Trata-se
de um roteiro literário, que na verdade é um romance escrito por
Tarkovski para servir de base para as filmagens. O roteiro
final foi escrito em parceria com Andrei Konchalovsky e parece
consistir apenas no acabamento dos diálogos e no corte de
descrições e cenas, pois o livro (ou roteiro literário) possui 14
capítulos, 5 capítulos a mais do que o filme.
OK,
mas porque tanta expectativa? Ora, pelo imenso filme de Tarkovski, um
dos melhores de toda a história do cinema, pelo profundo humanismo
que se desprende da história e pela grande carga emocional de um
filme que parece não terminar nunca, tal a impressão deixada nas
mentes de quem o vê. Com a publicação deste roteiro — falemos
sério, deste romance — ficam inequívocas as intenções do
cineasta soviético. Tarkovski pretendia mesmo discutir o papel do
artista e da fé na sociedade. Se o palco é a Rússia (Rus) da
invasão tártara do século XV, a alegoria serve a qualquer outro
tempo e sociedade. No livro, Rublióv está muito mais completo
e complexo do que no filme, o que, se não significa uma obra de arte
melhor — e certamente não significa — , significa explicações
para vários trechos apenas intuídos.
Na
leitura, capta-se melhor a personalidade do trio de pintores de
ícones, perdidos ou indo de igreja em igreja na paupérrima e
faminta Rússia medieval. Andrei é um jovem quieto e
misterioso. Daniil é resignado, propondo sacrifícios a si
mesmo. Kiril é esperto, lógico mas ciumento. O trio representa a
Trindade do ícone mais famoso de Rublióv. As cenas — todas
passadas por volta do ano de 1400 — nem sempre são contadas do
mesmo ponto de vista, podem variar, assim como a ordem de
apresentação delas é diferente no filme.
Andrei
Rublióv é um surpreendente painel sociológico sobre a Rússia
medieval. Os estranhos rituais, a fé, a necessidade da igreja para
não passar fome, a busca da própria identidade, a busca da verdade.
Há violência extrema na cena em que a igreja é invadida e
saqueada, com o sacerdote sendo marcado por uma cruz incandescente.
Ali, Rublióv perde a fé para reencontrá-la no filho de um
fabricante de um sineiro, um menino que, sem saber muito bem o que
faz e ameaçado de morte se não for capaz de forjar um sino, vai
adiante movido por não se sabe o bem o quê– pela mera intuição,
pela fé ou pela observação e desespero. Ali, Rublióv vai
reencontrar deus e o espírito para voltar a criar beleza religiosa
para um mundo absolutamente bárbaro.
O
filme, de 1966, foi somente liberado em 1969, assim mesmo com cortes
impostos pela censura soviética, que não aprovava a alegoria de
Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do
artista. Isto é algo quase não lê no “roteiro literário” do
diretor.
Andrei Rublev: Trindade. Galeria Tretyakov |
Fonte: http://www.sul21.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário