Certa feita, em Porto
Alegre, o recepcionista de um estabelecimento me disse peremptório que eu era
da fronteira; e acrescentou que isso transparecia nos fronteiriços antes mesmo
de se lhes ouvir o sotaque elucidativo; pensei: pode que haja apenas um exagero
do senso prático deste homem que, então, me parecera um grande observador. Todavia,
dali em diante, eu passei a cismar com isso de “ser da fronteira” com tanta
força de evidência.
A primeira vista, a
fronteira é só o lugar do encontro dos diferentes; eu sempre me representei a
precariedade de afirmar um ‘isto’ sabendo que havia um ‘aquilo’ e vice-versa.
Explico, quando se está na fronteira, o horizonte de nosso pensamento já está
alargado pela exceção à regra. As verdades afirmadas são válidas em um contexto
limítrofe. Para além da linha demarcatória temos outra cultura, outro tempo
histórico que, se não desmentem nossas verdades as tornam relativas.
Quando eu era guri,
esta incômoda exceção era repelida e aplacada pela seguinte cançoneta:
Castelhano pé de chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a permissão
Pra casar com brasileira.
Depois, este
estranhamento, esta negação do outro, era amenizada por percebermos que desde
sempre o “brasileiro” e o “uruguaio” já estavam assimilados, diluídos, fundidos
pela linguagem – tanto no portunhol,
quanto no empréstimo de palavras -, bem como pelos costumes comuns. Diz o
sociólogo José de Souza Martins: “A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os
tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política,
quando o outro se torna a parte antagônica do nós.”
Quando essa antropofagia, que tudo assimila mantendo
as diferenças, é deliberada e irreverente, deixamos a postura obstinada de Fernando
Pessoa que - devota do estranhamento -
se mantém transeunte inútil (...), estrangeiro aqui como em toda a parte e assume a
rebeldia do eu poético de Juana de Ibarbourou.
No poema Rebelde,
a poeta de Melo maneja esta força de assimilação do diferente, que é capaz de se
insinuar no próprio limiar da vida e afirmar: Caronte: yo seré un escándalo en tu barca. De modo que a
patriarcalidade sinistra do barqueiro se resolva na anulação da fronteira e que
ali onde tudo se avizinha da morte ainda se mostre pujante e vândalo o traço abarcador
da vida.
Isto é, a fronteira pressupõe a terceira margem do
rio, onde convivem harmonizados os opostos.
Sérgio Batista
Christino
Texto publicado na Coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional , edição do dia 14/07/2011.
2 comentários:
Interesante su texto, estimado Christino. Ser de la frontera es como no tener patria a veces. Y cuando tenemos la doble nacionalidad ello significa un mestizaje cultural y psicológico que es incomprensible para quien nos mira desde lejos. En Uruguay ser de la frontera con el Brasil es ser tildado de "bayano". ¡Un abrazo, y vaya mi admiración a sus interesantísimos textos!
Muito bom!! Adorei!
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