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Por um cinema do "cofrinho"
Todo
mundo conhece o “cofrinho”: sim, ele mesmo, o resultado visual
que causa a descida de uma calça ou bermuda quando uma pessoa se
abaixa, ou se posiciona para a frente. A nesga de bunda que deste ato
resulta visível, tanto para o desagrado da pessoa em questão quanto
para o dos que assistem a cena na maioria das vezes. Pois é, o
“cofrinho” é fenômeno tão bizarro quanto banal, tão
desagradável quanto absolutamente humano. Num mundo onde cada vez
mais se afirma a importância da aparência, da encenação, o
“cofrinho” é o momento onde vem abaixo o personagem que criamos
na vida real e se afirma a materialidade mais tosca e inegável dos
corpos humanos e suas características.
Pois
bem, recentemente muitos têm defendido que o cinema argentino
recente tem mais força do que o cinema brasileiro, e que isso teria
uma série de explicações. Embora precise ser melhor conceituada
(afinal, de que cinema argentino se fala, já que ele todo não chega
até nós), a afirmação tem sentido, em especial, se formos atrás
do cinema de uma Lucrecia Martel, e também de um Pablo Trapero cujo
terceiro longa nos chega agora. E este filme de Trapero nos faz
conseguir, talvez pela primeira vez com a clareza de uma imagem,
atingir um conceito que explique esta força: é tudo uma questão de
“cofrinho”. O cinema brasileiro padece de uma vergonha incrível
de mostrar o seu, cobrindo-o muitas vezes com roupas suntuosas, mas
mesmo quando usando uma humilde calça jeans e camiseta,
preocupando-se muito ao se abaixar em dobrar as pernas ou esticar a
camisa – com medo de que seu “cofrinho” revele apenas as suas
falhas, a sua condição um tanto patética de sustentação. Pois
Trapero mostra, mais uma vez (seu Bonaerense já
tinha nos permitido sentir o mesmo) que tudo que nos resta, muitas
vezes, é o nosso “cofrinho” - e o melhor que podemos fazer é
orgulharmo-nos dele, vendo que nossa diferença (se podemos afirmar
alguma) é a capacidade de mostrá-lo sem medo. E é o que ele faz
aqui neste filme – neste caso tornando a metáfora imagem mesmo de
seu filme, onde um personagem (não por acaso o “Gordo”) se
abaixa pelo menos três vezes revelando o seu “cofrinho” para o
espectador, e de lambuja revelando muito mais do que isso sobre um
conceito de cinema.
Sim,
porque o que Trapero realiza aqui é uma operação complementar à
de El
Bonaerense (infelizmente
não vimos seu primeiro filme, Mundo
Grua),
que opera no mesmo registro de olhar, ainda que em construções
dramáticas completamente distintas. Trapero busca um cinema do
pequeno gesto, um cinema onde cada parte significa mais do que o
todo, onde a aproximação da câmera com os personagens beira o
absurdo. Seu cinema é um cinema pulsante, e um cinema onde a
dramaturgia se constrói não só pela urdidura de uma sequência de
ações (o roteiro), mas acima de tudo pela forma como cada uma
destas ações é encenada pelo elenco e pela câmera que filma este
elenco. Neste sentido, importa bem menos que Bonaerense fosse
uma tragédia moderna, a afirmação de um não-personagem como
protagonista único de sua própria vida, enquanto em Família
Rodante a
chave predominante é a da comédia, e da afirmação coletiva da
existência, simbolizada pela família que viaja toda junta num
trailer. As diferenças entre os projetos servem para mostrar que se
a vida (e o cinema) não são uma coisa só, a ética de um olhar
para ela pode manter-se constante mesmo de formas bastante
distintas.
Trata-se
aqui de uma ética do olhar sim, porque a afirmação de um
ultra-realismo pelos filmes de Trapero (neste sentido, se
diferenciando completamente em forma de encenação da compatriota
Martel) nunca cai na esparrela da condescendência com seus
personagens, mas também nunca cai na tolice da condenação a eles.
Voltando à imagem do “cofrinho”: eventualmente ela até tenta
surgir em alguns filmes (até brasileiros), mas aqui o “cofrinho”
surge sempre com uma enorme carga simbólica – onde sua feiúra é
a imagem-síntese de uma decadência, de um olhar sobre algo sórdido.
Em Trapero, um “cofrinho” é apenas um “cofrinho”: não
afirma nada para além de um momento de despreocupação com sua
própria imagem. O que Trapero filma em Bonaerense não
é nada “doce”, assim como Família
Rodante não
doura a pílula, nem na comédia, de tantas das atribulações da
vida em família. No entanto, seu olhar sobre tudo isso nunca é o da
patologização, seja ela social ou familiar: as coisas são como são
e delas advêm o mais belo e o mais daninho – separar os dois,
porém, é operação impossível. Um exemplo disso é o personagem
do “cunhado” neste filme – aparentemente o único que podia se
dizer que é “culpabilizado” pelas suas obsessões. No entanto,
há uma operação essencial de Trapero: depois de expulso da família
(portanto, saindo do escopo dramático de interesse do filme – a
viagem até o casamento), ainda assim voltamos duas vezes a
acompanhar este personagem. Ou seja: quem o expulsa por seus atos
(compreensivelmente) é o personagem do Gordo, nunca o diretor do
filme. Trata-se, afinal, de apenas mais um personagem.
Se
é necessário dar conta de todas estas dimensões, importantes de se
afirmar positivamente no cinema de Trapero, o que não se pode cair é
no erro de, com um discurso teórico e para além do filme, perder de
vista a alegria que emana de Família
Rodante -
e que é sua principal característica. Assiste-se ao filme com um
inevitável sorriso no rosto, sorriso este que se torna muitas vezes
sonora gargalhada. O ultra-realismo de Trapero consegue criar
momentos antológicos de comédia e de identificação, seja na trama
que envolve os pré-adolescentes do filme (cheia de sensualidade e
inocência), seja nas participações da criança, seja (talvez acima
de tudo) nas intervenções da personagem central do filme, a avó.
Aliás, saber que quem interpreta esta personagem é a própria avó
de Trapero dá uma dimensão extra de significado ao filme, que se
termina com um belíssimo plano fechado no rosto desta personagem.
Autêntica homenagem (já afirmada também com a dedicatória que
abre o filme) não só a uma pessoa, mas a um olhar sobre a vida
passado de geração em geração, e que Trapero hoje representa como
poucos no cinema do mundo.
Eduardo Valente
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