Do Blog do André Setaro
No seu excelente Ponto de Encontro, coluna que saia todo domingo no Mais! (que acabou) da Folha de S.Paulo, o Professor Jorge Coli, que sempre escrevia coisas pontuais e interessantes, tocou num assunto fundamental, qual seja o do "cinema de arte". Não resisto à transcrição. Saiu no dia 21 de setembro de 2008. O tempo decorrido não desatualiza o que está dito.
"Inácio Araujo, com seu sentido certeiro das formulações, escreveu outro dia em uma de suas críticas na Ilustrada: "Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte'".
É uma frase que abala convenções. Se fosse "não mais que um blockbuster" ou "não mais que um filme de shopping", tudo pareceria coerente. Do jeito que ficou, tem o aspecto de uma contradição: a noção "filme de arte", em princípio, elevada, foi percebida como pejorativa.
É que o chamado filme de arte deixou de ser o campo da invenção e da ousadia, como era percebido até algumas décadas atrás. Existe agora uma concepção preestabelecida que enquadra "filme de arte", com algumas receitas mais ou menos explícitas. Passou a existir o academismo do "filme de arte". Ele cumpre parâmetros e se submete a convenções implícitas, que restringem o espírito criador em benefício de um trabalhinho bem feito.
A razão principal não é cinematográfica. Ela formou-se a partir de um pacto entre público e diretores culturalmente sofisticados, pacto que se estabelece por meio de sinais exteriores de reconhecimento, espécie de feromônios sem cheiro. Tudo isso substitui a criação cinematográfica mais autêntica.
Sim, perfeito, digo eu, passou a existir o academismo do "filme de arte". Os pseudo-cinéfilos que se deliciam com tudo que passa em sala alternativa da cidade, a pensarem, eles, que se trata de "filmes de arte", estão a trocar bolas, a misturar alhos com bugalhos. É interessante observar o comportamento dos pseudo-cinéfilos quando nas citadas salas alternativas. O Professor Coli foi preciso e tocou no ponto certo, quando diz da existência de um pacto entre público e certos diretores sofisticados, da "moda". Mas, por outro lado, pode advir do chamado cinemão (da indústria cultural hollywoodiana) filmes de grande expressão cinematográfica (Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, A árvore da vida, de Terrence Mallick, entre tantos). Já vi gente a torcer o nariz para os filmes de Clint Eastwood, o que é revelador de uma grande, profunda, imensa, ignorância. O grande cinema pode existir em qualquer lugar, quer seja pela obra autoral, quer seja pela obra oriunda de um esquema industrial. O resto é besteira. Cinema de arte não existe!
Os filmes resultam cheios de bons sentimentos, os temas são definidos de antemão como profundos; têm boa iluminação, boa filmagem, boa montagem. Os espectadores se encantam com algumas metáforas fáceis ou alusões que se querem densas. No fim, sai do cinema levemente entediado, mas com a satisfação de um dever cultural cumprido. Tudo isso é bastante simbólico e meio cerimonial. Cinema é uma arte, e a noção "cinema de arte" não é um título de nobreza, mas um pleonasmo. Ninguém consegue dizer de onde vai brotar a criação artística.
Mas voltando às palavras do Professor Jorge Coli: “Clint Eastwood, que nasceu de um cruzamento entre filmes baratos de Hollywood e o western spaghetti, tornou-se um artista maior na história do cinema. As seqüências dos "Alien", dos "Batman", para além da discussão sobre cada filme, formam magníficas sagas. É bobagem multiplicar os exemplos: um filme não é bom apenas porque é "de arte" ou ruim porque blockbuster.
A sensação de tédio, nada boa em princípio, pode, curiosamente, ter um papel valorizador no campo da arte. É um fenômeno perverso. Espera-se das obras que elas ofereçam prazeres superiores, mas não muito bem definidos, que elas tragam revelações preciosas, que agucem a sensibilidade. Em nome deles, suporta-se estoicamente o tédio, imaginando-se que, de algum modo, a recompensa virá mais tarde. Muita gente faz uma distinção nítida entre arte e divertimento, como se divertir com arte fosse quase um pecado.
Existe, por sinal, uma história filosófica desse pecado, que Hans Robert Jauss retraçou em sua "Pequena Apologia da Experiência Estética". A cultura norte-americana, com sua forte pregnância classificatória, insiste muito na separação entre "art" e "entertainment". Simplificando: se é arte, é chato, se é gostoso, não é arte. Esse jogo preconceituoso é péssimo: ele faz engolir gato por lebre e recusar lebre por gato. Há certas obras que são apaixonantes, mas consideradas difíceis. É que o espectador não encontrou as boas chaves para elas. Procurá-las é um desafio: dificuldade não quer dizer tédio, mas estímulo. As artes foram feitas para oferecer prazeres dos tipos e gêneros diversos. “Se eu me aborreço, é que alguma coisa está errada”.
SOBRE ANDRÉ SETARO
pesquisador, professor de Cinema da Faculdade de Comunicação da UFBA
e autor de Escritos sobre Cinema – Trilogia de um tempo crítico
Fonte: http://terramagazine.terra.com.br
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