Filme será exibido na Casa de Cultura as 20hs. Entrada franca |
Zano
(Romain Duris) e Naima (Lubna Azabal) estão na Argélia: franceses,
namorados, caminham sozinhos na direção oposta a da multidão,
misturando-se com ela. Neste plano emblemático de Exílios,
Tony Gatlif (prêmio de melhor direção no Festival de Cannes)
promove a migração inversa dos personagens, os quais, em busca das
lembranças perdidas, entram em contato físico e corpóreo com a
realidade sócio-cultural árabe - que, a princípio estranha, acaba
por construir a identidade e a memória afetiva do
casal.
Exílios abre
com plano fechadíssimo nas costas de Zano que, nu, observa o
movimento das ruas a partir de seu apartamento, enquanto música
unindo motivos árabes e technos – que não se sabe, de início,
fazer parte ou não da diegese do filme – fala sobre a necessidade
de ouvir os ausentes. Desde já, Gatlif questiona o corpo enquanto
local privilegiado onde ocorre a experiência sensível, ou seja, a
pele como elemento de transição entre o interior e o exterior,
entre o que não se é no presente para o que se quer ser no futuro,
através do passado, movimento que estrutura a narrativa sobretudo
por meio das canções (a maioria composta pelo cineasta). Estas em
geral se iniciam diegeticamente (ouvidas pelos próprios personagens)
para depois se expandirem ao filme em si, combinando-se de maneira
melódica com os ruídos específicos de cada seqüência.
À
proposta de Zano, Naima aceita ir à Argélia. A jornada, que
atravessa a Espanha, o Marrocos e o país-destino, serve para os
protagonistas reencontrarem suas lembranças: ele, a família que
resta na capital, após o exílio forçado do avô músico; ela, a
origem árabe, marcante no nome, que o pai negava ao não conversar
com a filha na língua natal. Contudo, se a procura parte de
objetivos específicos, Gatlif os esvazia ao longo do filme, uma vez
que são os acontecimentos – visuais, sonoros, táteis, palatais,
olfativos – experimentados pelo casal ao longo da viagem que
interessam à narrativa: seja o olhar sobre a terra árida e as
cidades destruídas pelas quais atravessam, seja o contato com os
irmãos árabes rumo à França ou com o grupo de ciganos, seja os
ataques de mosquitos ou a chuva, seja a festa em Sevilha na qual
Naima trai Zano com um nativo, seja a reconciliação do casal na
plantação de ameixas, seja a tomada, como clandestinos, do barco
errado e a conseqüente e não planejada ida ao Marrocos.
Trata-se
do ato de in-corporar, através do que o casal apreende e mergulha na
realidade alheia que se lhes apresenta. Criar laços, fomentar
relacionamentos com todos os “ausentes”, esquecidos e
marginalizados que cruzam o caminho dos personagens principais, como
no belíssimo plano em que Gatlif destaca o contato da gota de suor,
de uma completa desconhecida, no braço de Naima. Assim, não por
acaso, há onipresença de manifestações coletivas – a reunião
com os ciganos, a festa em Sevilha, o encontro com a família dos
irmãos que foram para a França, além da aproximação de Zano com
os parentes – que culminam no longo plano-seqüência no qual a
protagonista, mais do que apenas passar por simples transe mediúnico,
convulsiona o próprio corpo como símbolo da entrega e da
identificação com as memórias e lembranças construídas durante o
percurso (e, visto que está em jogo a relação entre o corpo de
Naima e o meio afetivo que o abriga, a seqüência somente poderia
ser filmada em plano único, que mantém a continuidade espacial
negada pelo corte).
Gatlif,
porém, sabe que Exílios existe
enquanto viagem dupla, e não individual, pois o reconhecimento do
casal nos Outros passa pela comunhão entre Zano e Naima: após
o ápice representado pelo plano-seqüência, há o singelo corte
para o casal se entreolhando, em primeiro plano, com o fundo
inteiramente desfocado, como se nada mais existisse fora daquele
momento único envolvendo os dois. Ao final, ambos prosseguem,
juntos, caminhando não se sabe para onde – já que, de fato, o
destino é menos importante que o deslocamento em si, das mulheres e
dos homens anônimos que nele surgem –, enquanto o walkman,
colocado por Zano no túmulo do avô, toca: a música, ao mesmo tempo
simples onda sensível aos ouvidos e verdadeira força transcendente,
realiza a ponte entre as memórias adquiridas e o futuro em aberto.
Paulo
Ricardo de Almeida
Crítico de Cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário