segunda-feira, 28 de março de 2011

História: Fronteira Sul sempre se notabilizou pela atividade cultural





Teatro Esperança em Jaguarão por onde passavam Companhias artísticas com destino 
a Montevidéu e Buenos Aires, teve concretizada primeira etapa de restauração.
Foto: Fábio de Oliveira


Em cidades da fronteira do Brasil com o Uruguai e a Argentina, quem hoje vai às compras em busca de ofertas em free-shops, contemporâneos templos do consumo, talvez não imagine que no passado nem só o comércio de supérfluos dominava a região. Se hoje por lá são raras as livrarias, cinemas e teatro, por certo não é por falta de tradição cultural.

Cidades como Santana do Livramento, Uruguaiana, Jaguarão, Santa Vitória do Palmar, Rio Grande, Pelotas, Bagé e Quaraí possuíam belos teatros. Alguns prédios ainda permanecem, como testemunhas de um tempo de intensas relações culturais entre povos de língua portuguesa e espanhola.

O historiador Lothar Francisco Hessel dedicou ampla pesquisa ao tema em seu 
O Teatro no Rio Grande do Sul (Editora da UFRGS, 1988). Segundo ele, em toda a imensa fronteira terrestre do Brasil, não houve região de maior atividade humana e cultural do que a do sul do país. Isso apesar de todos os períodos de conflitos entre lusos e castelhanos por problemas de limites territoriais, além das guerras Cisplatina e do Paraguai.

A história comprova que, nas fronteiras de nosso Estado, apesar da rara população e da intensa atividade agropastoril, os homens, apesar da imagem de rudes fazendeiros e trabalhadores do campo, não descuidavam da arte. Em períodos de economia extremamente favorável ao comércio do charque, como nos séculos 19 e início do século 20, a vida cultural acontecia no pampa. E não era só nas cidades. Em muitas estâncias da região, a cultura, a música e o teatro achavam abrigo. Hessel conta que, ao final do século 19, em Santana do Livramento, um pecuarista chamado Marciano Brum mantinha em sua estância uma tipografia própria, onde imprimia seus livros. No interior de Jaguarão, havia prédios para bibliotecas e salas de espetáculo particulares, além de mais de um teatro no centro da cidade. Em Bagé, o visconde Ribeiro de Magalhães mandou construir um teatro em seus latifúndios. Isso sem falar no Castelo de Pedras Altas, onde Assis Brasil montou uma biblioteca, que lá permanece até hoje lutando contra o tempo, apesar do descaso dos órgãos responsáveis pelo patrimônio histórico e artístico.

O porto de Rio Grande, em sua condição de porta de entrada de mercadorias do centro do país, da Europa e do resto da América, foi a partir do século 18 um lugar onde passava também a cultura. Artistas de Portugal e da Espanha, a caminho de Montevidéu e Buenos Aires, aproveitavam a parada para se apresentar nos teatros Sete de Setembro, de Rio Grande, e Sete de Abril, de Pelotas. Ainda segundo Hessel, depois dessas duas cidades, podiam as companhias seguir pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre, em busca do Theatro São Pedro, ou então tomar a Lagoa Mirim, até Jaguarão, onde o Theatro Esperança os esperava.

E como não existia acesso hidroviário até a rica cidade de Bagé, isso antes da chegada do trem, em 1884, Hessel conclui que para se apresentar nos desaparecidos teatros 28 de Setembro e Coliseu, esse último com mais de mil lugares, as companhias de óperas e operetas, de marionetes, dramas e comédias de Portugal e da Espanha lá chegavam em diligências, "ao estilo do velho teatro ibérico dos tempos de Calderón de La Barca". E cita Bernardino Machado de Azevedo, para falar da vida cultural de Quaraí, terra de muitos intelectuais como Dyonelio Machado, Cyro Martins e Natho Henn: "No fim e princípio do séculos 19 e 20, Quaraí, então São João Batista de Quaraí, era constantemente visitada por inúmeras companhias teatrais; do prata, quase nenhuma, mas procedentes da Espanha foram muitas as dramáticas e de zarzuelas que nos visitavam, fazendo penosas viagens; algumas conduzindo o cenário vinham carretas de bois, procedentes sua maioria de Uruguaiana; e quando o volume de suas bagagens não era de vulto, serviam-se de carruagens tiradas por mais de uma parelha de fogosos rocinantes, oriundos dos nossos pagos gaúchos e que por sua destreza e agilidade superavam os 'sendeiros' de Dom Quixote."

Os belos teatros como o Esperança, de Jaguarão, o Sete de Abril, de Pelotas, e o Prezewodowsky, de Itaqui, são os poucos que permanecem hoje em pé, conservando os marcos de uma polarização do Brasil e dos países do Prata, para lembrar o trabalho de Lothar Francisco Hessel. O velho professor e pesquisador da história do Rio Grande do Sul da UFRGS usava a estatística e o patrimônio histórico deixados pelos séculos passados para demonstrar a seus alunos que os 80% de tempos de paz contra apenas 20% de tempos de guerra podiam comprovar que a imagem de nossa fronteira sul, de bárbaros em constante conflito, precisava ser trocada pela de uma civilização aberta e avançada, não só de agropecuária e de comércio, mas de cultura e de civilização. E onde a Esperança por tempos melhores passaria sempre pela história e pelo edifício de seu velho Theatro, em Jaguarão.


Eduardo Vieira da Cunha, artista plástico, professor do Instituto de Artes da UFRGS

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