sábado, 17 de dezembro de 2011

O Sobrado

a vetusta janela emoldura a vista desta solene ruazinha de pedras

N
ós nos sentimos lá dentro, no andar de cima da Casa do Barão.  Com o risco de incorrer num critério meramente saudosista, consideramos que as duas ou três lojas do térreo – onde realmente estivemos – representam uma afrontosa ocupação.
            Então é de se inventar, também, que nos abrira a porta um encarregado, homem encarquilhado, baixo e extrovertido. Tão falante que, já ao pé da escadaria de cedro, gesticulando com as chaves na mão, enaltecia os antigos fidalgos que, por mais de meio século, habitaram o casarão; e que, quando lhes convinha, em vez daquela escada, subiam pelo elevador – uma engenhoca (talvez de pau e ferro), com roldanas e cordas puxadas por escravos.
É de se supor, ainda, que lá dentro do sobrado restara um penumbroso vazio em que o bodum úmido do tempo tresandava das tábuas do assoalho e do teto; da escaiola, surpreendentemente conservada; e dos lustres de bronze que, por sorte, ninguém ousara desmontar.

            A Casa das Sete Torres e a Casa do Barão. Ocorre-nos assim, por cotejo, a decadência da nobreza rural – que Hawthorne, em seus escritos de Boston, tão comovidamente descreveu e que, com bastantes coincidências, representa um fato universal: o loteamento costumeiro das antigas e aristocráticas mansões.
            A cidade é romântica, por si mesma E, no momento, nossa alma é suscetível desta síntese: a beleza triste e melancólica do sobrado.
A observação distraída dessas ruas e dessas casas – algumas do século XIX –, a par do encantamento e da compreensão histórica, atiça a curiosidade. Quem foi o Barão?  Seus traços provavelmente quedaram nas sombras. Aquele ali, o da ponte histórica, chamava-se Mauá.
Quando objetivo, o interesse poderá ser contentado pela sondagem perseverante de um historiador. Mas cabe suspeitar que a expectativa muitas vezes se arrefeça com a correção da pesquisa. Além do que, o tom adequado para simbolizar a história desses casarões descuidados é justamente o mistério de seus personagens.
            O declínio da era rural. Cabe admitir que suas peculiaridades se tornem propulsoras de tantas e assombrosas conjeturas. Que o destino mudara o sítio de transcendência dos senhores que viveram nessas casas. Que muitos de seus descendentes estejam aqui. Que outros cruzaram a ponte velha e escultural, motivados por consórcios, partições, ou novos confortos.
Pois há mais, há sempre mais. Existe este horizonte raso, que parece sublinhar a similitude geográfica e definir linearmente entre os viventes dos dois lados uma afinidade anímica quase segredosa – como a afinidade dos que se gostam e que a distinção dos idiomas só consegue sublimar.
Ocorre-nos, lembrando o relato histórico e romanceado de Aldyr Garcia Schlee, que o castelhano Fructuoso Rivera – o Don Frutos – nos meados do século dezenove, sentiu-se em casa aqui em Jaguarão, enquanto se revigorava para reassumir o poder na banda oriental desta terra sem limites.

            Pois lá dentro do sobrado – onde pensamos estar –, ao escancarar-se na imaginação do abandono, a vetusta janela emoldura a vista desta solene ruazinha de pedras, deste antigo mercado, deste posto de saúde e deste céu fraternal que açambarca ainda um trecho do rio – que percorre o tempo celebrando a unicidade do pampa – e acaba naquela tira de campo arborizado que já é do Uruguai.
            E então, um de nós três visitantes, que somos cúmplices dessas esparsas especulações da realidade e de tantas fantasias – que são razoáveis, considerando-se o pertinente desfecho de certas tradições – imaginou o parecer de outro forasteiro, que estaria perto de nós:
            – O escritor jaguarense tem sortidas razões. Essas fronteiras demarcadas por alambrados e rios são convenções carentes de sentido. E a paisagem que ora se descortina é realmente – na nitidez dos sentimentos – a paisagem de uma terra só.
Uma terra só. O livro denomina, agora, esta rua curta que pode ser plenamente avistada pelos fantasmas do casarão. Não se trata de mera homenagem de reconhecimento, senão que um anelante propósito de alcançar todos os significados que transcendem este nome: Uma terra só.
Nada mais caberia dizer. Mas a curiosidade é impaciente e teimosa: que será da Casa do Barão? Admite-se, por hora, prescindir da resposta, porque o foco é o batismo da rua. Mas, amanhã ou depois – como se deu hoje com o fim do anonimato deste estreito e solene caminho de pedras –, aquele sobrado gris haverá de celebrar algo também importante: o desfecho de seu abandono.

João Félix Soares Neto


O arroio-grandense João Félix Soares Neto nasceu em 1936, numa manhã de natal. Vive desde os 12 anos em Pelotas, onde estudou no Colégio Gonzaga, dedicou-se ao jornalismo, trabalhou no BB e chegou a cursar Letras na UCPel. Foi parceiro musical-letrista- de Harry Rosa,Gélson Domingues e Alfredo Allgayer Osório. Depois de 70 anos, três filhos e cinco netos publicou em 2007, seu primeiro livro, “O cigarro ensangüentado”, que são as reminiscências de um guri repartido entre o bulício de uma pequena cidade e o ludismo rudimentar do campo. Lançou este ano em Pelotas,  sua segunda obra, “Na palma da mão – uns contos no sul”, ficção de prevalência realista.   


Um comentário:

Anônimo disse...

Bonito. Porém é claro que deve-se fazer à cerca da pessoa do Barão e familiares certos ajustes. Na verdade, por parte do Barão (Gabriel Tavares Leite) nunca foi puxado o elevador por escravos. Até porque primeiramente ele era Barão português, e outra que ele veio para Jaguarão, já na década de 1890), ou seja, não existia mais escravos. Um abraço. Deixo essa pequena observação. Sou trineto dele e da Baronesa, Palmira.

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