domingo, 25 de dezembro de 2011

O último dia

Foto J. Passos

Era uma vila, mas todos os habitantes, talvez por megalomaníacos, chamavam-na cidade. Cidade de São Miguel tinha vinte e uma casas, uma igreja, um mercado, uma escola, um hospital, um cemitério e uma praça.
Cerca de cinqüenta pessoas que podiam sair de lá por três caminhos diferentes, e que de certa forma, caso o fizessem, jamais voltariam a vê-la.
Pedro Arduriz, filho de Joana Cortez e Pablo Arduriz, tinha sessenta e seis anos bem vividos, todos eles gastos dentro das fronteiras daquela pequena grande cidade, que sempre fora a sua vida.
Acordou naquele já distante 3 de outubro, foi até o seu país das maravilhas particular, localizado no sótão e encarou todas as obras de arte que sua imaginação e sua destreza combinadas foram capazes de criar.
Apoiado na bengala, que aparentava ser mais velha do que ele, fez um pequeno tour pelo seu museu particular e quando chegou ao final de sua pequena peregrinação, sentiu-se satisfeito por tudo o que fora capaz de criar, pensava nisso, enquanto apagava a luz e deixava o trabalho de uma vida para trás.
Nunca se casara, tivera apenas um amor, mas filho de carpinteiro que era não pôde desposar a filha do, então, prefeito. Ela acabara se casando com outro e ele acabara se casando com as artes.
Naquele dia em que ele se despediria do mundo, lembrá-la ainda era o seu mais corriqueiro pensamento, mesmo após tanto tempo, e esquecê-la ainda era o seu mais fervoroso deseja, afinal, quem não deseja morrer em paz.
Saiu a rua, e a viu desértica. Sentia-se feliz, por saber que não mais estaria solitário em bem pouco tempo. Caminhou lentamente pela única rua da cidade e após alguns segundos de hesitação bateu à porta da ultima casa.
Do outro lado passos suaves e lentos, fizeram-se ouvir, através do ranger da madeira. Um homem baixo de olhos claros e inexpressivos, abriu a porta, usava um casaco negro, sua boca permaneceu aparentemente imóvel, enquanto ele dizia:
- Nunca imaginei que você seria o último.
Pedro olhou-o, como alguém que já esperava ouvir algo do tipo e então falou:
- Faz um ano que você diz isso. E em todas as vezes eu fico dizendo a mim mesmo, que eu sempre desejei ser o primeiro.
- Bom- prosseguiu o homem do casaco negro- Já estamos atrasados. Vamos?
Pedro olhou-o quase como um homem feliz pela ultima vez e agarrado ferozmente a sua bengala iniciou o trajeto a que se propusera, andando pela ultima vez por entre as casas que conhecera de toda a sua vida.
Chegaram ao cemitério e sentaram-se sobre a terra vermelha e úmida. Após alguns minutos, de profundo silêncio, Pedro olhou para o homem de preto e perguntou-lhe despreocupadamente:
- De que lado esse ano?
- Sudoeste – Respondeu o homem de preto de forma seca.
Duas covas estavam abertas, montes de areia as cercavam por todos os lados. Pedro escolhia a sua, quando um forte relâmpago fez-se ver sobre a montanha. O homem de preto olhou para Pedro e disse finalmente:
- Chegou a hora.
Direcionaram- se para as suas respectivas covas, pulando os montes de areia que as cercavam. Eram exatamente onze horas e trinta e sete minutos daquela manhã.
- Adeus, Antoine. – Disse Pedro Alburiz.
- Adeus, meu amigo. – Respondeu o homem que vestia preto.
O Choro da chuva aliado ao uivo do vento, acabou tornando-se um pequeno tufão. Ele desceu ferozmente, desde a montanha, arrasando a cidade, parou como quem olha às portas do cemitério e soprou um vento suave que empurrou a terra por sobre as covas ainda abertas, tapando-as.
Depois, refez o seu caminho, quebrando o que havia deixado em pé, qual fosse um menino birracento, irritado por não ter mais brinquedos para manusear.
Antoine expirou sério. Pedro Alburiz sorria, não conseguira esquecer daquela filha de prefeito. Mas naquele momento, era a imagem dela que o tranqüilizava. Não teve medo quando a cova foi tapada, afinal, havia um ano que ele sabia, seria o último.

Nicolás Gonçalves

Publicado na coluna Gente Fronteiriça do Jornal Fronteira Meridional do dia 22/12/2011.


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